quinta-feira, 6 de outubro de 2011

ALENTEJANOS ILUSTRES



O MAIOR MÚSICO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVI (UM...ALENTEJANO!!!)

VICENTE LUSITANO

Há já dez anos, Lisboa homenageou, na sua toponímia, um músico português e alentejano renascentista,dando o seu nome à (agora antiga)Rua Particular à Quinta da Torrinha, na freguesia da Ameixoeira, a norte do Lumiar. Convém recordá-lo, para que se não esqueça que o maior músico nacional do século XVI foi um filho da maior região portuguesa.
Falamos de um homem que passou à História com o nome de VICENTE LUSITANO, um dos poucos músicos portugueses que conquistou audiência musical no estrangeiro, e logo como compositar e teórico afamado no ramo . Foi mesmo professor em Roma, Viterbo, e Pádua.
A primeira referência de vulto a Vicente Lusitano data de Junho de 1551. Nesse ano, durante uma recepção musical em casa do banqueiro florentino Bernardo Acciaioli, em Roma, por causa de uma composição musical então ouvida (o canto gregoriano da antígona "Regina Coeli"), surgiu um diferendo em torno de qual dos géneros pertenceriam ascomposições musicais do tempo. Com uma opinião, estava Nicola Vicentino (1511-1576), italiano, ao serviço do Cardeal de Ferrara. Com opinião contrária, estava VICENTE LUSITANO, que dizia que o género musical seria o diatónico, e não um sistema misto de três géneros (diatónico, cromático, e enarmónico).
Realizou-se então um concurso, em que os argumentos dos dois foram ouvidos e avaliados por especialistas, e o vencedor proclamado foi VICENTE LUSITANO. Note-se que, em plena época do Concílio de Trento, dar razão a quem se opunha a um protegido do Cardeal de Ferrara, muito próximo do Papa, foi algo surpreendente. Todavia, Vicente Lusitano era uma pessoa muito influente, ligado também à Cúria Papal, considerado um grande especialista musical, resultantes de quinze anos de aturados estudos.
Vicente Lusitano era considerado um dos maiores teóricos musicais do seu tempo. Entre 1551 e 1555, publicou-se em Roma a sua colecção de motetes "Liber primus epigratum" ( ou "motetta dicuntur"). Em 1555, também em Roma, surgia outra obra sua, "Introdutione facilissima", que seria reeditada em Veneza em 1558, e de novo em 1561.
Em 1561, surpreendentemente, o músico português estava no Würtemberg, na Alemanha, ocupando um lugar importante na Capela da Corte daquele Estado Germânico. Uma carta de 30 de Maio de 1561 dá-nos as últimas informações de certa credibilidade sobre a sua pessoa: tinha-se convertido ao Protestantismo, casara-se, e não voltaria mais portanto ao Mundo Católico. Terá morrido no Würtemberg, ou quiçá em Paris, talvez por volta de 1570. Para evitar perseguições, terá evitado dar motivos para que dele se falasse.
Lamentavelmente, a sua música perdeu-se quase inteiramente, exceptuando-se um madrigal, publicado sabe-se lá porquê em 1562 em Veneza, e, segundo a estudiosa Maria Augusta Barbosa, talvez o "Tratado de Canto e Órgão", um manuscrito encontrado na Biblioteca Nacional de Paris, cuja autoria é incerta, embora haja fortes probabilidades de ser de Vicente Lusitano.
Segundo João de Freitas Branco, os duzentos anos da música renascentista portuguesa estão integrados na época mais esplendorosa de toda a História da Música Portuguesa, ainda que o nosso conhecimento dela apresente várias lacunas. Os vultos mais importantes de então, para além do mais notável (Vicente Lusitano), foram Manuel Mendes, Filipe de Magalhães, Duarte Lobo, Francisco Martins, Manuel Cardoso, António Carreira, e Manuel Rodrigues Coelho.
Curiosamente, um dos grandes centros musicais portugueses de então, referido já como importante em 1543, mas com tradições firmadas anteriores, era Olivença, situação que se prolongou pelo menos até 1630. Ter-se-á desenrolado uma "luta" entre o Clero e os estudantes e a Burguesia de Olivença, que influenciou o ensino da Música na localidade, ignorando-se se essa mesma luta não terá estado na origem da posterior decadência dessa arte ali.
A História de Vicente Lusitano, um "pardo" (Mulato, mestiço) nascido em Olivença entre 1520 e 1530, que chegou a ser um músico de dimensão europeia e a andar próximo da Corte Papal, para posteriormente ser atraído pelo Protestantismo e desaparecer da cena histórica, é bem o espelho de uma época de grandezas e misérias, de pragmatismo étnico e cultural, mas de final dogmático e intolerante, que foi a centúria de quinhentos em Portugal.
Estremoz, 09 de Fevereiro de 2006 (texto revisto)
Carlos Eduardo da Cruz Luna





AIRES TINOCO, NAVEGADOR ALENTEJANO DO SÉCULO XV
Nem sempre quem vive junto ao mar é o melhor navegador. Muitos alentejanos do Interior se destacaram nos descobrimentos. Vamos recordar um deles.
Chamava-se Aires Tinoco, e era moço da Câmara do Infante D. Henrique. O seu heroísmo veio à tona em 1446. Viajava na caravela comandada por Nuno Tristão, um experiente navegador, o qual foi a terra, com vinte e dois homens, em terras da Guiné. Infelizmente, não foram bem recebidos pelos locais, só escapando com vida dois homens, André Dias e Álvaro da Costa, ambos escudeiros do Infante e naturais de Évora. O próprio comandante perdeu, pois, a vida.
Sete navegantes ficaram por fim no barco, dois gravemente adoentados, e outros dois, os sobreviventes do massacre, bastante feridos.
Quem iria conduzir a caravela de volta a Portugal ? Apenas três indivíduos estavam inteiramente válidos: um grumete, um negro, e... Aires Tinoco. Os dois eborenses referidos não puderam ajudar eficazmente os companheiros durante mais de vinte dias.
Deixemos Gomes Eanes de Zurara, na sua Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné", contar-nos o que se passou:
"Ó grande e supremo socorro de todos os desamparados (...), onde bem mostraste que ouvias suas preces quando em tão breve lhe enviaste tua celestial ajuda, dando esforço e engenho a um tão pequeno moço (Aires Tinoco), nado e criado em Olivença, que é uma vila do sertão mui afastada do mar, o qual, avisado por graça divinal, encaminhou o navio, mandando ao grumete que directamente seguisse o norte (...), por que ali entendia ele que jazia o Reino de Portugal (...).
(...) Este moço que disse era aquele Aires Tinoco (...), no qual Deus pôs tanta graça que por dois meses continuados encaminhou a viagem daquele navio (...); ao fim dos quais cobraram vista de uma fusta (barco) (...), sobreveio em eles uma nova ledice, e muito mais quando lhes foi dito que estavam na costa de Portugal, a través de um lugar do Mestrado de Santiago, que se chama Sines. E asiim chegaram a Lagos, donde se foram ao Infante ( D. Henrique ) contar-lhe o forte acontecimento da sua viagem, apresentando-lhe a multidão de flechas com que seus parceiros morreram (...)".
Resumindo, Aires Tinoco conseguiu levar a caravela da Guiné a Portugal, passando ao largo das actuais costas da Guiné-Bissau, Senegal, Gâmbia, Mauritânia, Shará Ocidental, e Marrocos, com a ajuda de dois inexperientes jovens, mais talvez do que ele, e o incentivo, imagina-se, de dois marinheiros eborenses feridos.
Sabe-se que, pelo seu feito, Aires Tinoco foi muito elogiado, e agraciado com terras em Elvas, na sua Olivença natal, onde lhe foi atribuído o ainda em pé Monte do Barroco (Velho) junto à aldeia de São Jorge de Alôr, e ainda em Estremoz, onde, além do almoxarifado, recebeu casas e terras.
Foi ainda escrivão do Infante D. Henrique. Em 1475, vivia ainda, ao que parece em Estremoz. É referido em vários documentos como pessoa estimada e merecedora do adjectivo de heróica, pelo seu feito.
Não se sabe quando morreu...como também não se sabe exactamente quando nasceu, embora se tenha aventado a hipótese de ter sido em 1428. A morte, essa, foi decerto posterior a 1476. Nada se sabe dele depois de desaparecido, e nada se encontrou sobre eventuais descendentes, se os houve.
Não foi, todavia, esquecido, pois a sua navegação genial de dois meses pelo Atlântico, rumo ao Norte, entre a Guine e Portugal, ilustra bem a saga portuguesa de dar novos mundos ao mundo.
Estremoz, texto revisto em 16 de Fevereiro de 2006,
Carlos Eduardo da Cruz Luna





O ALENTEJANO QUE FEZ O FORTE DA ILHA DO PESSEGUEIRO!!!

JOÃO RODRIGUES MOURO, UM ENGENHEIRO/ARQUITECTO DO SÉCULO XVII

António Martins Quaresma/adaptação de Carlos Eduardo da Cruz Luna
Há nomes que o tempo parece apagar. E, por vezes, isso sucede. Em contrapartida,
outros há que são descobertos ou redescobertos... e, por vezes, onde menos se espera.
Um trabalho de 2009 sobre o Forte da ilha do Pessegueiro (Porto Covo/Sines) propiciou
descoberta de um engenheiro e arquitecto alentejano. O autor, António Martins Quaresma,
não resistiu, e fez algumas pesquisas biográficas.
Assim se descobriu que João Rodrigues Mouro (ou João Roiz Mouro) nasceu em Olivença,
em 1620, ou um pouco antes. Era filho de Pedro Antunes Mouro, e casou, em 1646, na Igreja
da Madalena, na sua localidade natal, com Maria Pedreira, possivelmente sua conterrânea.
Note-se que o apelido "Mouro" foi comum em Olivença entre os séculos XVI e XVIII.
João Rodrigues Mouro foi soldado entre 1648 e 1653, e teve o cargo de ajudante nas
obras da fortificação de Olivença. Recorde-se que estávamos no Guerra da Restauração
(1640-1668 ), e importantes engenheiros estrangeiros trabalharam naquela vila alentejana
(João Gilot, Nicolau de Langres, Jan Ciermans/Pascácio Cosmander). É legítimo conjecturar
que João Rodrigues Mouro fez a sua aprendizagem em contacto com estes homens, que em
Portugal introduziram o método de fortificação que mais tarde, anacronicamente, seria
chamado "estilo Vauban". Nessa época, não existiam Escolas de Engenharia ou de
Arquitectura, e eram mestres que iniciavam discípulos ou aprendizes.
A partir de 1653 ou 1654, encontramos o nosso homem a trabalhar em Setúbal,
trabalhando nas fortificações desta Praça e nas suas dependências. O Engenheiro
existente, Sebastião Pereira, estava velho e incapacitado, e João Rodrigues Mouro foi
indicado para o substituir... o que se tornou oficial em 23 de Novembro de 1665. Ganhava
então 40 Cruzados (1600 réis/ cerca de 80 (!!!) cêntimos em moeda de 2009)
Sabemos que em Setúbal e nas fortificações que lhe eram dependentes,como já dissemos,
com destaque para o litoral alentejano, João Rodrigues Mouro deixou obra feita e de
destaque, quer de raíz, quer de reconstrução e adaptação, como o Forte de São Luís
Gonzaga, alguns parapeitos da Fortaleza de São Filipe, o meio baluarte de São Domingos,
Outão, e, mais longe, obras nos castelos de Palmela, Sesimbra, e Alcácer do Sal. Nos
arredores de Setúbal, há notícias sobre inúmeros trabalhos.
A obra mais emblemática situa-se a sul de Sines, na Ilha do Pessegueiro, frente a
Porto Covo. O belo Forte que ali se ergue, e que delicia quem o avista ou quem nele
entra, resistiu ao tempo, sofreu obras de restauro, e é uma preciosa herança deste
engenheiro até há pouco quase desconhecido.Terá sido construído, talvez, entre 1679 e
1684.
João Rodrigues Mouro terá morrido por volta de 1707, já bastante idoso. Detinha o
posto de tenente-general. O seu sucessor, João Tomás Correia de Brito, foi o autor de uma
obra onde incluiu alguns desenhos de fortificações da sua autoria.
A História, que tanto enaltece as glórias puramente militares ou os rasgos artísticos
mais notórios, esquece por vezes pessoas que, noutras áreas, contribuem para a sua
construção...
Estremoz, 16-Novembro-2009
António Martins Quaresma///resumo/adaptação de Carlos Eduardo da Cruz Luna






CAETANO JOSÉ DA SILVA SOUTO-MAIOR, UM ALENTEJANO NA CORTE DE D.JOÃO V E UMA
FIGURA POPULAR DE LISBOA
Caetano Jozé da Sylva Sotomayor (ortografia antiga), modernamente um quase
desconhecido, nasceu muito provavelmente em 1694, filho de Gaspar da Silva Moniz,
"Provedor dos Reynos" e de Isabel Teresa Sotomaior, Dama da Rainha D. Maria Ana da
Áustria, esposa de D. João V. Faleceu em 18 de Agosto de 1739.
Note-se que, entre as famílias nobres, e até ao Século XIX, o apelido de pai precedia
o de mãe em Portugal, tal como sucede ainda hoje em Espanha.
Souto-Maior (usando agora a ortografia moderna ) era conhecido, no seu tempo, por
"Camões do Rossio". A sua popularidade no Corte de D. João V, e principalmente em Lisboa,
deixou rastos, inclusivamente na Literatura. Inácio Feijó e Almeida Garrett escreveram
uma comédia intitulada "O Camões do Rossio", o que dá uma idéia de quão conhecido era e
de que forma era visto como representando toda uma época. O seu nome foi dado ao actual
Largo D. João da Câmara, em frente da Estação do Rossio, até que, na década de 1930, um
vereador da Câmara de Lisboa, ignorante, pensando que tal "Camões" se referia ao imortal
poeta Luís de Camões, mandou substituir o topónimo, com o argumento de que jà existia em
Lisboa uma Praça Luís de Camões. Note-se ainda que Souto-Maior é visto por Feijó e
Garrett só como filho de uma época que para eles, liberais, era símbolo de tirania e
mediocridade, e, logo, é considerado uma figura ridícula. Um claro exagero, desculpável
no contexto das paixões do Século XIX.
Souto-Maior, alentejano, nascido em Olivença, era doutorado em Direito Canónico pela
Universidade de Coimbra, tendo começado, todavia, por estudar Latim, em Lisboa, com o
Padre Manuel de Abrantes. A 14 de Abril de 1721, fez exame no Desembargo do Paço e foi
nomeado Juíz dos Órfãos do Termo de Lisboa. Foi depois Juíz do Crime do Bairro da
Mouraria, e, finalmente, Corregedor do Bairro do Rossio de Lisboa desde 3 de Outubro de
1737. Neste cargo o surpreendeu a morte, na sua casa no mesmo Rossio, em 1739.
Os seus ditos, chistosos, grangearam-lhe cedo a fama de poeta excepcional. Daí que, em
Lisboa, o tenham apodado "Camões do Rossio".
Homem da Corte de D. João V, foi um dos favoritos deste soberana, entre outras coisas
pelo seu versejar fácil e jocoso... o que fazia dele um alentejano bem típico... ou
talvez um antecessor do tipo de alentejano moderno, poeta perante a vida.
Curiosamente, muitos dos seus versos conservam-se...manuscritos ! J. M. da Costa e
Silva, no final di século XIX, dedicou-lhe um estudo, onde se pode ler, entre outras
coisas, que "avultam entre os seus poemas os sonetos, que são em geral bem pensados,
fortes de expressão, e bem versificados, não tendo que invejar aos melhores dos poetas
seus contemporâneos; foi, sem dúvida, um dos mais distintos discípulos da escola
gongórica/barroca, e, como tal, mais por culpa do século do que por falta de talento,
transpôs às vezes os limites do Bom Gosto."
Não é muito apreciado modernamente o estilo gongórico, considerado demasiado "pesado",
pela adjectivação excessiva, pelo exagero das metáforas, pela excessiva preocupação com a
forma...esvaziando o conteúdo... e escondendo demasiadas vezes a mediocridade artística
de alguns e a genialidade de outros. Todavia, muitos destes ataques e caracterizações a
esse estilo provêm de homens das épocas literárias imediatamente posteriores, os quais,
na ânsia de porem em causa os valores que os tinham precedido, muitas vezes não foram
imparciais... misturando o trigo com o joio.
Caetano José da Silva Souto-Maior era famoso pelas suas anedotas, ajudadas, digamos
assim, pelo seu aspecto físico, pois era muito baixo e gordo, "com um rosto redondo de
uma expressão estranha, e ornado de uns óculos de um modelo desproporcionado". Os seus
ditos engraçados e os seus versos em forma de epigrama tornaram-se uma delícia para os
membros da Corte. Por outro lado, receavam atacá-lo, pois as suas respostas, muitas vezes
em verso, nomeadamente em sonetos, podiam ser demolidoras.
O seu aspecto de crítico implacável ressalta de dois poemas típicos que se seguem. No
primeiro, satiriza o Monteiro-Mor do Rei, coronel de um regimento, que era muito cruel
para com os seus subordinados... talvez para compensar o facto de ser zarolho...
Coronel Satanás, Fernão zarolho,
cruel hárpia das que o abismo encerra,
na empresa de afligires esta terra
de que serve o bastão, se tens esse olho?

Vai-te deitar na granja de remolho
onde o vilão, porque o escorchas, berra;
pois não é para o ilustre ardor da Guerra
"abobra" com feitio de repolho.

Se soubeste juntar com força rara,
sendo em ti o prender genealogia,
de galinha o louvor, de mono a cara,

anda, prende, e ateima na porfia,
pois em Aldegavinha tens a vara
e n`Ásia, em Cananor, a Feitoria.

No outro verso (também soneto ), o "Camões do Rossio" critica um Pregador da Ordem dos
Grilos, célebre pelo seu amor à bebida.
Tal sermão, e tão grande, e sem parelha,
do nosso Reverendo Frei Palrilha,
será d`asnos oitava maravilha
por somente constar de muita orelha.

Eu quando o vi com cara tão vermelha,
dizendo as asnidaddes em quadrilha,
sem reparar nos calos de servilha,
julguei tuo fumaças da botelha.

Se o Sermão se pregasse na Pampulha,
de toda a marotice a vil canalha,
metera muito embora o Frade a bulha;

mas eu venho a inferir nesta baralha
uqe o tal frade a todos nos empulha
ou ele certamente come palha.

Note-se que o "Camões do Rossio", apesar do seu espírito folgazão e "satirizante", era
"um erudito de valor, muito estudioso e conhecedor das leis". O Padre D. Manuel Caetano
de Sousa, em 1720, escolheu-o para ser membro da Academia Real de História, ao lado de 49
pares. Foi encarregado de escrever as "Memórias Eclesiásticas do Bispado de Leiria".
Regularmente, publicava relatórios dos seus estudos académicos, e era assíduo nas
reuniões convocadas na Academia, ou noutras instituições. Deixou escritas ( e algumas
ainda não publicadas várias obras de carácter jocoso, e até uma colecção de Sonetos
Cómicos. Escreveu também composições muito "sérias", como "Epicédios na Morte da
Serníssima Senhora D. Francisca, Infanta de Portugal", "Glória de Erice: Epitalâmio ao
casamento dos Ex.mos Snrs. D. Francisco Xavier de Meneses e D. Maria José da Graça e
Noronha", "Óperas de Metastásio (tradução)", "Catálogo dos Bispos de Leiria", "Contas dos
Estudos Académicos do Paço", e "Silva eRomance ao ser reeleita Abadessa de Santa Clara de Lisboa a Madre D. Margarida Bautista".
Num estilo completamente diferente, a que adiante se fará ampla referência, terá escrito
"A Martinhada".
Caetano José tinha mesmo alguma qualidade. Afinal, ele nem sequer escreveu
principalmente poemas satíricos, como veremos nos dois sonetos seguintes.
O primeiro destinava-se a uma Dama da Corte, e procurava convencê-la a viver a vida, e
a não continuar doentiamente a chorar em frente a uma pintura que representava a sua mãe
falecida.
Senhora, esse retrato, esse portento
tanta saudosa dor nunca alivia,
que a memória da amada companhia
não melhora, duplica o sentimento.

Lembrado, o bem perdido é mal violento,
e ofende essa pintura a fantasia.
Não pode ser remédio, é tirania
fazer parcial do dano o entendimento.

Fugi dessa belíssima aparência
que o pranto justamente vos persuade
que as lágrimas fez crédito de ausência.

E o vosso amor, das cores na verdade,
há-de achar, para abono da impaciência,
a formosura unida co`a saudade.

O outro punha Afonso de Albuquerque, numa atitude generosa. O polémico guerreiro teria
deixado perderem-se num naufrágio muitas riquezas para salvar uma menina indiana de ser
tragada pelas águas. É supostamente Albuquerque que fala, dirigindo-se ao mar.
Não assustes, oh bárbaro elemento,
a inocente, que tenho ao peito unida,
que a glória desta acção compadecida
respeita até das ondas o violento.

Tu logras o furor, eu logro o intento
de ficarmos com sorte repartida.
Asilo nobre de uma tenra vida
sepulcro avaro de ouro macilento.

Se tenho a varonil integridade,
que consegues no horror dessa inclemência
ou que importa a infeliz calamidade ?

Quando fica no exemplo da violência
desprezado o interesse da piedade
e vencida a desgraça da inocência.

D. João V mostrou ter grande predilecção pelo jocoso juíz académico, consentindo-lhe o
que a outros não consentiria... como veremos. Caetano José, sentindo-se apoiado pelo Rei,
aproveitava-se disso para fazer várias "travessuras" que, em última análise, divertiam a
Corte.
Algumas vezes acompanhou o Soberano, que apreciava a sua companhia, nomeadamente ao
Convento de Odivelas, onde estava a amante do Rei (Madre Paula) e onde este, divertido,
punha o seu matreiro versejador, com os seus poemas inigualáveis e a sua alegria irónica,
em confronto com "a audácia travessa de algumas freirinhas também dadas à poesia"...
Enquanto magistrado, era conhecido como uma pessoa correcta e íntegra no cumprimento
dos seus deveres, sendo muitas vezes encarregado de importantes e difíceis missões
oficiais. O poeta sabia, com graça, fazer-se perdoar pelo Rei quando agia de forma menos
convencional.
Pelas histórias que dele se contavam, podemos considerá-lo como uma espécie de Bocage
prematuro, no que deste se mitificou quase sempre sem fundamento. Contavam-se histórias
divertidas sobre respostas prontas, cheias de inteligência ( e em verso ) dades por
Caetano José em situações embaraçosas, ou perante gente com más intenções. Entre tudo
isto, o povo de Lisboa considerava-o como um dos poucos magistrados honestos que nela
tinham exercido cargos.
Dois episódios, referidos por José Maria da Costa Silva ("Ensaio biographico-crítico
sobre os Melhores Poetas Portugueses", 1855), destacam-se de muitos outros.
O primeiro refere-se a uma ordem de prisão que Caetano José, enquanto Corregedor, teve
de fazer cumprir, ainda que fosse amigo do perseguido. Este, vendo a sua casa cercada,
refugiou-se no telhado, donde não houve maneira de o fazer descer. Caetano José
vislumbrou no facto uma esperança, e cooreu ao Paço, onde, com um ar inocente, e sem
entrar em razões, perguntou a D. João V se considerava que governava só das telhas para
baixo, ou se também das telhas para cima. O Rei, algo intrigado, respondeu que
naturalmente das telhas para cima "só Deus tinha Domínio". O Corregedor e poeta
agradeceu, e, correndo a juntar-se aos seus homens, mandou levantar o cerco "por sugestão
d`el-Rei", salvando assim o amigo. O Rei acabou por achar graça à astúcia, e perdoou.
Mas Caetano José tinha também espírito crítico, e talvez até alguma consciência
social, como se verá no segundo episódio.
Numa noite, o Corregedor procurava, com um marido desesperado, um confessor para a
esposa deste, que estava a morrer. Na Casa Professa dos Jesuítas, em São Roque, foi-lhe
dito que os Padres da Companhia não podiam sair, fosse para o que fosse, depois das
Avé-Marias, ao entardecer. Foi preciso procurar um Padre de outra Ordem.
Ferido com o que considerou uma indignidade, vingou-se Caetano José dias depois, ao
encontrar dois jesuítas na rua por volta das duas da noite. Deu-lhes ordem de prisão,
apesar dos protestos e dos hábitos que vestiam e para os quais chamaram a atenção. Na
manhã seguinte, foi chamado ao Paço, onde o Prelado dos Jesuítas, indignado, reclamava
justiça junto de D. João V. Respondeu-lhes o Corregedor dizendo que se convencera estar
diante de dois ladrões disfarçados de Jesuítas, por saber que os Padres dessa Ordem não
saíam de noite, nem sequer para uma confissão de uma moribunda. O Rei, algo divertido,
deu ordem de libertação. Caetano José procedeu à mesma de imediato, o que era também uma
vingança, pois assim o povo da Capital viu sair da vergonhosa prisão, furiosos, os dois
frades, o que era uma humilhação para uma Ordem que pretendia dar exemplos a toda a gente.
As já referidas semelhanças com Bocage foram também a maior maldição do "Camões do
Rossio". O nosso Caetano José resolveu "publicar"(se é que dele partiu a iniciativa...),
anónima e clandestinamente, uma obra onde entravam prostitutas, pedintes, poetas de rua,
vagabundos, e ladrões. Tratou-se de "A Martinhada", que era, nem mais nem menos, que um
poema épico-cómico-erótico satirizando a sensualidade brutal de Frei Martinho de Barros,
o confessor de D. João V durante algum tempo, tido como femeeiro insaciável... e de quem
se dizia ser possuidor de um atributo viril de dimensões colossais.
Nunca se provou ser ele de facto o autor, mas a certeza foi quase absoluta. No seu
tempo, tal não abonou em seu favor, e tal obra valeu-lhe o desprezo dos críticos do
Século XIX ( e mesmo de parte do XX), "em cujos hábitos de leitura não entravam
devassidões nem leviandades"... pelo menos publicamente. Curiosamente, quase todos tecem
discretos elogios ao poema e às capacidades e génio do autor, todos surpreendidos por ser
precisamente nele que se encontram algumas das melhores demonstrações do "estro" de
Caetano José... pela simples razão, opina-se hoje, de, num texto de tal teor,
semi-anónimo, o autor não ter sido obrigado a sujeitar-se à moda literária da época.
Dir-se-ia que uma espécie de anátema ficou a rodear o "Camões do Rossio". Uma
manifesta injustiça rodeia o quase esquecimento em que caiu. Não tinha, decerto, o génio
de um Bocage. Mas, numa última comparação com este, pergunta-se: o que seria de Bocage,
um dos maiores poetas portugueses por todos reconhecido, se, em nome das suas obras
eróticas, se silenciasse toda a sua obra ?
Não se deveria esquecer também que quase todos os grandes poetas e escritores em
geral, como se sabe hoje, em qualquer momento da sua vida, caíram na tentação de produzir
textos eróticos...
A morte de Caetano José, com cerca de 45 anos, foi bastante sentida, nomeadamente pelo
povo de Lisboa, que o sentia como um dos seus,e que, mais de cem anos depois, ainda o
recordava. À data em que faleceu, não lhe faltaram louvores, nomeadamente de outros
poetas. Recorde-se apenas um soneto do Padre Francisco Ribeiro de Miranda.

Em louvor do "Camões do Rossio"
(À sua morte...)

Não chores Portugal a sorte escura,
reprime a dor, suspende na saudade,
porque da bela Infanta a divindade
já triunfa imortal da Parca dura.

Dessa Silva a elegante arquitectura
lê, e verás como hoje te persuade,
que viva existe para a eternidade
contra estragos da morte, e sepultura.

Esta obra, ó Orfeu esclarecido,
de objecto singular, e fama altiva,
mais que todos te deixa enobrecido:

pois vencendo o poder da Parca esquiva,
faz que a cinza o cadáver reduzido
de espírito animado, eterno viva.

Pela sua genialidade, pela sua dedicação a Lisboa, pelos anátemas que o seu nome tem
sofrido, pela simpatia de que gozava entre a população da Capital Portuguesa, pareceria
bem justa, só pecando por tardia, a atribuição do seu nome a um qualquer topónimo da urbe
onde viveu e morreu... mesmo por que na sua terra natal parece também estar cada vez mais
esquecido.
Estremoz, texto revisto em 12 de Março de 2006,
Carlos Eduardo da Cruz Luna,
Rua General Humberto Delgado, 22, r/c 7100-123-ESTREMOZ (Portugal) 268322697
939425126
Prof. História carlosluna@iol.pt

BIBLIOGRAFIA:
- Ensaio biographico-crítico sobre os melhores Poetas Portugueses- José Maria da Costa e
Silva, 1855
- A Corte de D. João V- Pinheiro Chagas
- O Camões do Rossio- Inácio Maria Feijó/Almeida Garrett
- O Voador- Francisco Maria Bordalo
- A Martinhada (Camões do Rossio)- Colecção Contramargem, edições "& etc", Janeiro 1982
- Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, 1960
- Dicionário de História de Portugal - Vol. III, Alfa, 1986
- Dicionário da Literatura Portuguesa, Ed. Presença, org. Àlvaro Manuel Machado, 1996
- Do Pícaro na Literatura Portuguesa- João Palma Ferreira, 1981, Bibl. Breve- Inst. Cult.
e Língua Port.
- Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Publ. Europa-América, Inst. Port. Livro,
vol. 1, 1985
- Colecção Portugal Histórico, vol. 6 (D. João V, Rei Absoluto), Fernando Mendes, Ed.
Romano Torres, 1935 (?)

(TEXTO PUBLICADO NO GRUPO ALENTEJANOS NO FACEBOOK PELO DR. CARLOS DA CRUZ LUNA)






PROF. JOAQUIM ROQUE. Uma vida na defesa da cultura popular e do Alentejo profundo

Dados pessoais
Joaquim Baptista Roque
Nasceu a 26 de Janeiro de 1913, em Peroguarda, concelho de Ferreira do Alentejo
Faleceu a 2 de Dezembro de 1995, em Lisboa
Nome da mãe: Maria Carolina Pedras
Nome do pai: João Baptista Roque

Formação académica
Seminário Diocesano, em Serpa (1926 a 1931)
Magistério (1934 a 1936)

Profissão
Chefe de Secretaria do Tribunal de Trabalho de Beja (até Novembro de 1940)
Professor primário em Cuba
Professor Primário em Ervidel
Professor Primário em Beja (1943)
Adjunto de Director Escolar de Beja (Abril de 1951)
Professor secundário (particular)
Director do Distrito Escolar de Lisboa

Obras publicadas
Alentejo Cem por Cento
Subsídios para o estudo dos Costumes, Tradições, Etnografia e Folclore Regionais
1ª Edição, Beja, 1940
2ª Edição, Ferreira do Alentejo, 1990
Câmara Municipal de Ferreira do Alentejo
195 páginas

Polemista
Recolheu e deu a conhecer à comunidade científica diversos vocábulos (p.e. RUAZ) usados com frequência no Baixo Alentejo e não registados em qualquer dicionário ou vocabulário, incluindo o da Academia das Ciências de Lisboa.

Estudos de Linguagem
Mondando em seara alheia... nos domínios da Filologia (uma denúncia de paternidade ilegítima
1ª Edição, Beja, Abril de 1945

Estudos de Linguagem II - Ainda, Roaz ou Ruaz?
resposta a uma crítica tendenciosa e mordaz...
1ª Edição - 1.000 exemplares, Beja, Agosto de 1945
Minerva Comercial
Carlos Marques & Cª. L.da – BEJA
32 páginas

Rezas e Benzeduras Populares (Etnografia Alentejana)
1ª Edição, Beja, 1946
Minerva Comercial
Carlos Marques & Cª. L.da – BEJA
117 páginas

Ciclo do Natal no Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo

Breves Considerações sobre a “História” da Batalha de Ourique
Comunicado ao II Congresso sobre o Alentejo
15 a 17 de Maio de 1987
18 páginas

Artigos dispersos em diversos jornais e revistas:
Jornal Médico (Arquivo de Medicina Popular), Porto
Arquivo de Beja
Diário do Alentejo
Notícias de Beja
Mensário das Casas do Povo
Ourivesaria de Portugal
Revista de Portugal
Alentejo Histórico, Artístico e Monumental
Almanaque Alentejano

Com o pseudónimo Joaquim d’Aldeia
A Nossa Casa do Povo
Peça de teatro em 3 Actos
Concurso do Secretariado da Propaganda Nacional, Teatro do Povo
Representada em 1941

Com o pseudónimo Joaquim Gaspar em parceria com o Professor Abílio Gaspar (Joaquim Roque e Abílio Gaspar) uma série de livros escolares para a instrução primária:
Livro de Leitura da 4ª classe - livro moderno, devidamente actualizado, com exercícios de interpretação dos trechos, gramática e redacção. (20$00)
Vocabulário do Livro de Leitura da 4ª classe - com significados, exercícios de interpretação, gramática e redacção. (6$50)
História de Portugal para a 4ª classe - já organizada segundo os novos programas de Julho de 1968 - Colecção Santa Cruz, Atlântida Editora, Coimbra 1968.

Membro das seguintes instituições Culturais e Científicas
Centro de Estudos do Baixo Alentejo – Beja
Instituto Português de Arqueologia, História e Etnografia – Lisboa
Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura - Rio de Janeiro
Clube Internacional de Folclore - Natal (Brasil)
Sociedade Luso-Brasileira de Etnologia - Rio de Janeiro
Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia da Faculdade de Ciências – Porto

Os meus primeiros contactos pessoais com o professor Joaquim Roque remontam ao início da década de 70 e resultaram de circunstâncias perfeitamente decorrentes da vida do dia-a-dia de todos nós.

Sendo colega de trabalho da sua filha Maria do Carmo, que na altura se encontrava grávida, proporcionou-se em determinada altura ter-lhe dado transporte no meu carro para a casa de seus pais e, consequentemente, lhes ter sido apresentado.

O decorrer do tempo, o estreitamento das relações de amizade, sou padrinho de baptismo do seu neto Alexandre Bruno, que na altura se desenvolvia no ventre da mãe, concedeu-me a grande felicidade de melhor conhecer o professor Joaquim Roque, como Homem e como Intelectual.

Os meus encontros com o professor Joaquim Roque, especialmente quando me levava até ao seu escritório do 1º andar, eram sempre extraordinariamente enriquecedores pelo manancial de conhecimentos que naturalmente deixava fluir nas conversas, que me transmitia e que eu avidamente absorvia.

Sempre transparecia das suas sábias palavras um profundo amor pelo seu rincão de origem, o Alentejo, pelas suas gentes e pelos usos e costumes que tanto o interessaram.

A sua cultura profunda, a ânsia de conhecer novas terras e novas gentes e a seriedade do seu pensamento resultaram em muitas viagens pelo Mundo, cujo regresso era sempre esperado com ansiedade para ouvirmos o muito que nos trazia para contar. E de que maneira o fazia!

O Professor Joaquim Roque foi, sem dúvida, uma das pessoas que mais influíram no meu gosto pelos usos e costumes do nosso Povo; que mais me levaram a desejar compreender o valor da nossa própria região.

A não perder: Prof. Joaquim Roque, Colecção de Folclore Alentejano, CD+libreto ed. C.M. Portel)

(TEXTO PUBLICADO NO GRUPO ALENTEJANOS NO FACEBOOK PELO AMIGO VICKTOR REIS)

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