quarta-feira, 2 de março de 2011

O CANTE ALENTEJANO - ENVIADO POR JOSÉ BORRALHO




José Borralho ESTE CONTRIBUTO (PESSOAL) À TEMÁTICA DO CANTE, FOI ENTREGUE EM MÃO NO ÚLTIMO CONGRESSO DA MODA EM SERPA, E CERTAMENTE POR LAPSO, FOI IGNORADO PELA MESA QUE DIRIGIA OS TRABALHOS.

O Cante

Muitas são as opiniões suscitadas pelo Cante Alentejano, sejam as suas origens, os seus temas, a sua importância e influência na vida do povo rural.
Há autores que defendem que as fontes do Cante são judaicas, outros que são árabes, outros ainda atribuem as suas origens à influência da Igreja Católica.
Resumindo: segundo estes opinadores, teria vindo de fora o sopro que fez cantar os Alentejanos e Alentejanas. Quanto a mim, estas opiniões não abarcam, e passam ao lado do fundamental do problema, pela razão simples de atribuírem papel de segundo plano ao actor principal, e à sua inserção na realidade concreta, na vivência milenar do povo com seus hábitos e costumes, sua relação com o trabalho, com o sofrimento diário da luta pelo sustento, por um lado, e com a sua forma intrínseca de expressar alegrias, sofrimentos, desilusões e revoltas por outro lado.

É desta realidade envolvente da vida do Povo Alentejano que surge a forma de se expressar através do canto, que encontra na planície o espaço para ouvir o eco das suas emoções poéticas, e que recebe da dureza do trabalho e da forma de exploração acrescida do latifúndio motivos para se encontrar com os outros na sua condição de sem-terra, e com eles partilhar e fundir os mesmos sentimentos através dum canto colectivo.

Se alguém escutar os argumentos dos que atribuem as raízes do Cante ao judaísmo, terá de conter o riso porque o argumento é simplesmente este: "As semelhanças encontram-se no todo, mas elas notam-se principalmente em pontos de contacto muito específico – o maior dos quais a sua forma 'responsiva', pois tanto na oração judaica como no cantar tradicional alentejano há um 'líder' e um coro que responde. Mas é a forma como essa relação, esse diálogo melódico, se desenrola que parece deixar pouca margem para dúvidas acerca da evidente afinidade.”1
Por esta ordem de análise, o mesmo se poderia aplicar nas práticas católicas uma vez que também aí, nas missas cantadas, uma voz começa e as outras respondem, estabelecendo-se dessa forma um diálogo religioso em forma cantada. Mas, o que tem a ver o diálogo religioso praticado nas igrejas e sinagogas com o diálogo multicultural das interrelações entre os membros de uma comunidade, neste caso os Alentejanos?
Pura e simplesmente nada! Nem mesmo na forma.

Porque aqui não há um líder, nem uma entidade divina que evidencie o motivo do canto. Há sim um grupo de indivíduos que, comungando das mesmas alegrias, sofrimentos, amores ou revoltas, à volta de um balcão com vinho, numa feira ou a tratar a terra, assumem as suas afinidades e solicitam do outro a partilha de problemas comuns a todos; as coisas do trabalho, dos animais, da natureza, do amor, e da condição de povo que nada tem de seu: é daqui que vem o sopro do cante Alentejano.

Os alentejanos, tal como qualquer outra comunidade, são influenciáveis pelo conjunto de valores e práticas de outras comunidades e povos. Os factores subjectivos são transversais a todo o tecido social, em maior ou menor grau, dependendo das relações sociais, económicas e culturais dominantes.

É uma realidade indesmentível que os árabes nos deixaram marcas da sua civilização. O modo de vestir das nossas avós, e que ainda hoje encontramos em alguns sítios das nossas aldeias, a tolerância para com os outros, (evidenciada durante a sua permanência entre nós), a calma na resolução dos problemas do quotidiano, o suportar do calor abrasante, e porventura nalguns laivos da nossa maneira de cantar, para não falar da influência das palavras, e dos modos de cultivo e rega. Dos seus preceitos religiosos pouco restou, porque, como é sabido, a religião cristã assumiu-se como dominante, e naturalmente o povo assimilou-a aculturando-se, embora em menor grau que noutras regiões, devido principalmente à quase ausência de propriedade individual.

Mas é forçoso reconhecer que a semelhança do cantar árabe com a forma do cantar alentejano é práticamente inexistente, embora, como salientou Michael Giacometti, as raízes da estrutura musical do Cante mergulhem na musicalidade árabe.
É também de salientar que o cante alentejano alicerça a sua força melódica no coral, no colectivo, enquanto no cantar árabe ressaltam a maviosidade e o brilhantismo da voz individual, parecendo duas formas de cantar distintas uma da outra. Pouco existe em comum entre estas duas formas de cantar.

A força do cante alentejano provém da profundidade dos sentimentos que dele exorbita.
Aqui ficam alguns exemplos da força e da personalidade do Cante Alentejano.

Da condição social:
“ Nós somos trabalhadores que no campo trabalhamos// Trabalhamos ao rigor do nascer até ao pôr para ver se nos mantemos…”

“Há lobos sem ser na serra/eu ainda não sabia/ debaixo do arvoredo/ trabalham com valentia...”

“Muito bem parece um ramo de flores/ pregado no peito dos trabalhadores//dos trabalhadores, dos oficiais/ no meu lindo amor, no meu lindo amor/ ainda brilha mais.

Do trabalho:
“Já morreu o boi capote camarada do pombinho/ quem não for capaz não bote regos ao pé do caminho.”

“Trabalha homem trabalha se queres ter algum valor…”

“Lavro a terra ceifo o trigo/tiro a cortiça aos sobreiros/ também apanho azeitona cantando os dias inteiros”.

Da natureza:
“O sol é que alegra o dia pela manhã quando nasce”…

“Ó água do céu cais pura / já não vais a ter ao mar/ ficas presa na barragem/ que temos em Portugal”…

“Já chove já está chovendo/ já correm os barranquinhos/já os campos estão alegres/ já cantam os passarinhos”…

Do amor:
“Que inveja tens tu das rosas / se és linda como elas são”…

“Só uma pena me existe minha doce saudade/ é olhar para o teu rosto ver-te assim tão pouca idade”…

“Moreninha alentejana quem te fez morena assim/foi o sol da primavera que caía sobre mim”…

Da atitude mística:
“Eu vi minha mãe rezando aos pés da virgem Maria/ era uma santa escutando o que outra santa dizia”…

“Ó águia qe vais tão alta voando de pólo a pólo/ leva-me ao céu aonde eu tenho a mãe que me trouxe ao colo”…

“Quando eu oiço bem cantar paro e tiro o meu chapéu/ não se me dava morrer se houvesse cantes no céu”…

O Cante alentejano constitui sem dúvida uma expressão artística de grande valor na música tradicional do nosso país, porque os alentejanos, ao cantar, não limitam a sua expressão a um momento de divertimento. O Cante expressa os sentimentos belos do amor, as preocupações sociais do colectivo, e de um povo que luta pela dimensão digna de ser humano.
Cabe aos alentejanos lutar para que se mantenha bem viva esta sua forma de expressão.
1(in-blog Rua da Judiaria)

José Fonseca Borralho
24 de Janeiro de 2010


Colocado no facebook em 02-03-2011 às 12:02




COMENTÁRIOS NO FACEBOOK

Luis Milhano ‎"Cabe aos alentejanos lutar para que se mantenha bem viva esta sua forma de expressão."
Grato pela divulgação deste texto, excelente contributo para o conhecimento das origens do cante alentejano.
Quarta-feira às 12:08

Francisco Martins Obrigado amigo Borralho por este magnifico trabalho.
Quarta-feira às 12:17

José Borralho O meu contributo vai no sentido de dar primazia ao factor social -um povo sem terra- e à forma de exploração latifundiária que aproximou o Povo de soluções colectivas, a começar pelo Cante. É possível que o o cantar gregoriano tivesse alguma influência na forma de cantar dos alentejanos, mas, muitos séculos antes de os Frades da Serra d'ossa chegarem ao Baixo Alentejo já o povo manifestava o seu cante:
Quarta-feira às 12:22 ·

Filomena Barata Obrigada José pelo contributo.
Quarta-feira às 23:29

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