segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

AS MULHERES NO CANTE ALENTEJANO



AS MULHERES NO CANTE ALENTEJANO
1
por Sónia Moreira Cabeça
2
e José Rodrigues dos Santos
3
Os primeiros grupos corais alentejanos datam da década de 20 do século
passado mas foi necessário esperar mais de 50 anos (precisamente até 1979)
para descobrir o primeiro grupo coral feminino. Só nos finais do século XX os
grupos corais femininos se impuseram no panorama das práticas musicais
populares alentejanas. Observemos como foram (e são) recebidos, que
mudanças vieram trazer e a emergência de novos grupos corais mistos.


O Cante Alentejano


No Alentejo, região sul de Portugal, observa-se uma forma de cantar, sem
instrumentos, diferente das demais observadas no país: o Cante Alentejano. É
uma estrutura melódica, uma poesia, um canto que assenta na excelência vocal
dos seus executantes. O Cante, marca identitária do Alentejo, está há muito
presente na esfera de sociabilidade dos alentejanos e na interacção entre
gerações. Apesar da ausência de fontes anteriores aos finais do século XIX, é
provável que a presença desta forma cultural no território seja bastante mais
antiga.
A face mais conhecida do Cante é a sua “polifonia”, executada em grupos
corais. Apesar de poder ser praticado individualmente, foi na sua execução
coral que assumiu maior notoriedade. Aliás, o cante alentejano tem sido quase
sempre descrito observando grupos espontâneos, reunidos em situações

1
Publicado em: 2010. Cabeça, S.M. e Santos, J.R. “A mulher no Cante Alentejano” in Conde,
S.P., Proceedings of the International Conference in Oral Tradition, Concello de Ourense,
Ourense, vol II, 31-38.
Texto redigido no âmbito do Projecto “Dinâmicas do Cante Alentejano” (Cidehus – Centro
Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora, financiado pela
FCT): PTDC/ANT/64162/2006 (FCOMP-01-0124-FEDER-007036). Equipa: Professores José
Rodrigues dos Santos e Cláudia Sousa Pereira (coord.) e Dr. Amílcar Vasques-Dias, Sara
Diogo, Sónia Cabeça e Cyril Isnart.
2
CIDEHUS, Universidade de Évora
3
CIDEHUS, Universidade de Évora

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Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010

informais ou os grupos que entretanto se foram constituindo formalmente, o
que levou muitos observadores a insistir na sua qualidade de “canto a vozes”
(Lopes-Graça 1946; Marvão 1955; Delgado 1980; Nazaré 1986).
Antes de dar uma breve descrição da organização das partes na interpretação
desta forma de canto, interessa sublinhar que o pouco que se sabe da evolução
destas práticas permite identificar um movimento de transformação da relação
entre os cantadores e a sociedade em que se inserem, no qual é possível
distinguir três fases principais, no que respeita à participação dos homens e das
mulheres. A primeira fase abrangeria as práticas mais ou menos espontâneas,
ou organizadas apenas localmente e de modo sem dúvida relativamente
autónomo, em que a participação de ambos os sexos está referenciada. Embora
pouco documentada, essa fase ter-se-á caracterizado pela prática do Cante em
grupos femininos, masculinos, ou mistos (sem excluir situações em que se
formam face a face grupos de cada sexo, cantando uns e respondendo outros,
em festas populares). As mulheres não só não estavam excluídas do Cante nas
situações privadas e também individuais (algumas interlocutoras, instadas para
nos citarem cantigas de embalar, afirmaram que escolhiam as “modas” mais
doces e mais serenas para cantarem às crianças ref. De entrevista), como
participavam em público, como já dissemos, em cantos de grupos informais.
Uma segunda fase terá tido início nas primeiras décadas do século XX, e de
modo mais maciço a partir dos anos 30, sob o regime de Salazar. É a fase em
que se constituem os primeiros grupos corais formais, e em que o seu número
aumenta significativamente, sob a impulsão das políticas do fascismo
português. Estes grupos corais são desde logo e mantêm-se durante esta fase
como grupos exclusivamente masculinos. A intensa propaganda do regime, que
instrumentaliza esta forma cultural (como aliás o fará com muitas outras por
todo o país), impões a ideia que o Cante é de essência masculina, e que as
mulheres “não cantam”, ou melhor, “não podem cantar o Cante”. Um
interessante efeito de amnésia apaga durante pelo menos meio século o facto
comprovado que as mulheres podiam cantar e tinham cantado o Cante na fase
precedente e antes, tão longe quanto alcançam a memória e os documentos.


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Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
A terceira fase inicia-se após a Revolução de Abril de 1974 e prolonga-se até ao
presente. A profunda transformação cultural que a revolução inicia não
concerne apenas às estruturas políticas, à liberdade de associação (sindicatos,
partidos, etc.), nem apenas a aspectos de reivindicação económica e social
(nesta região foram ocupadas pelos trabalhadores rurais dezenas de
latifúndios), mas abre um espaço de liberdade de palavra na esfera privada, e
influi profundamente nas relações entre homens e mulheres em todos os
âmbitos sociais em que os dois sexos se encontram, cooperam, competem. É
nesse contexto de grandes movimentos sociais e culturais que surge o primeiro
grupo coral feminino, em 1979. O número de grupos femininos não cessou de
crescer, e é bem claro que, como veremos mais em detalhe, a sua formação se
acelerou nas duas últimas décadas.
Este fenómeno, cuja importância não é apenas reconhecida do exterior pela
antropologia, mas é, pelo contrário, um facto de primeira grandeza e de grande
importância para os próprios actores (femininos e masculinos), merece uma
atenção especial. Com efeito, ao abrir-se às mulheres, o mundo do Cante não
ganha apenas um maior número de praticantes: o acesso das mulheres às
práticas modifica-as. As mulheres vão cantar de maneira diferente, escolher
repertórios em parte diferentes, associar às interpretações vocais (corais) outros
elementos que os que utilizavam os homens (trajes, adereços, passos). Quanto
ao facto que os próprios grupos masculinos tenham também registado
alterações na sua prática, culminando com a constituição de grupos mistos, é o
que mostra o nosso inquérito. Interessa pois descrever a transformação que as
práticas femininas, em vez de representarem um efeito de simples acesso a algo
que é dado, modificam o campo de práticas a que acedem.
O Cante Alentejano

No cante alentejano os papéis atribuídos aos cantadores são tidos como
determinantes para defini-lo. Duas partes são atribuídas aos solistas (o “Alto”,
o “Ponto”) e a terceira ao coro (as “segundas” ou “baixos”). As peças que
constituem o repertório próprio do Cante são chamadas “modas”, que podem


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ser executadas de várias formas. Impôs-se todavia com o tempo uma forma que
se tornou uma referência para a maioria dos grupos de cantadores: canta-se
uma estrofe inicial (“cantiga”) seguida de duas estrofes entendidas como
“estribilho” (hoje diríamos refrão), volta-se a cantar uma nova estrofe (outra
“cantiga”) e finalmente repete-se o estribilho. Cada peça é constituída pelas
“cantigas”, que são estrofes livres e uma “moda”, um conjunto de duas estrofes
“fixas”. A “cantiga” pode ser modificada, ou até substituída por outra,
consoante a inspiração do grupo, do solista, ou da ocasião. Já a moda deve ser
respeitada, ser imutável. Na generalidade, as “cantigas”, estrofes que não
correspondem ao estribilho, são cantadas por um solista. É ao “ponto” que cabe
cantar a primeira “cantiga”. Surgem logo a seguir as duas estrofes da “moda”
em si que são entendidas como o “coração” da peça musical. A moda vai ser
iniciada por outro solista, o “alto”. O “alto” cantará a solo apenas um verso ou
parte dele (parte duma palavra do verso, uma palavra, ou várias), juntando-selhe de seguida o coro (formado pelas restantes vozes, as “segundas”), que o
acompanha até ao fim da segunda estrofe da “moda”. Finda a “moda”, o
“ponto” canta nova cantiga, repetindo-se a “moda”.
A organização do cante em vozes distintas confere ao Cante Alentejano uma
sonoridade que o distingue. “Polifonia em terceiras paralelas” (Nazaré 1979),
“geralmente a duas vozes, ao intervalo de terceiras” (Marvão 1966), assim é
caracterizado. O Ponto coloca em evidência “toda a sua habilidade técnica” e
“terá a preocupação de variar os contornos melódicos do espécimen em
execução”; segue-se o Alto, que “retoma a mesma estrutura melódica
cantando-a à terceira superior e procurando igualmente uma variação para o
seu contorno”; depois “as «segundas», retomando a estrutura melódica cantada
anteriormente pelo «ponto», juntando-se ao «alto»” (Nazaré 1979). Noutras
palavras, o Ponto “propõe o canto, não raro de uma certa exuberância
melismática” e o Alto “vem sobrepor-se, formando a sua parte em terceiras (ou
quintas, nos apoios cadenciais)”, podendo “variá-la à vontade consoante o
princípio da improvisação” (Lopes-Graça 1973), preenchendo “as pausas com
os ‘vaias’, no fim das frases musicais” (Marvão 1985). Obviamente, os
melhores cantadores desempenharão os papéis de solista, cada um atribuindo o


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seu cunho pessoal à sonoridade do grupo. No Cante a “improvisação”,
“ornatos”, “inflexões vocais”, “um género de trémulo da voz”
4
assumem
grande relevância. O cantador “recorre bastante ao ornamento da palavra, ao
melisma. Em vez de a cada sílaba corresponder uma nota (…) uma sílaba
corresponde a muitas notas de música” (Padre Cartageno, em entrevista, 1998)
o que torna difícil a sua transcrição em pauta
5
.
Grupos corais formais e perda de visibilidade da mulher


A escassa documentação sobre o Cante Alentejano, aliada ao curto espaço
temporal que a memória social permite reconstruir, impede um estudo mais
aprofundado mas é, contudo, possível aferir que esta era uma prática corrente e
informal, quotidiana, no seio das comunidades alentejanas dos finais do século
XIX e princípios do século XX
6
Os alentejanos cantam. Cantam a sós e .
cantam em conjunto. Cantam no trabalho, no lar; cantam nos ranchos de
trabalhadores, cantam os homens que se juntam na taberna, os participantes do
baile e das festas locais e religiosas… E o Cante viaja com os alentejanos para
novos locais.
Cantam homens e mulheres. Em 1902 Dias Nunes descreve os cantos corais
“na via pública”, entoados por homens e mulheres em conjunto (os
“descantes”)
7
Vários informantes referem que, algumas décadas atrás, o canto .
surgia entre homens e mulheres, no seio do lar, nas festas e nos bailes, nos




4
Ver obras de Nazaré, Lopes Graça, Ernesto de Oliveira e Padre Marvão
5
Lopes-Graça, F. (1946). “Apontamento sobre a canção alentejana”. A música portuguesa e os
seus problemas. F. Lopes-Graça. Lisboa, Cosmos.: as modas “constituem um verdadeiro
quebra-cabeças para quem tiver a veleidade de as anotar exactamente”.
6
Nunes, M. D. (1902). "“Costumes da minha terra - Os Descantes”." A Tradição 4(IV).
Monteiro, E. (1902). "“Modas-estribilhos alentejanos”." A tradição Vol II Neves, C. and G.
Campos (1883, 1885, 1898). Cancioneiro de Músicas Populares Porto, Typographia
Occidental, Vasconcelos, J. L. (1888). "“Observações sobre as cantigas populares”." Revista
Lusitana I., Thomaz, P. F. (1918). Cantares do Povo português. Coimbra, França Amado
Editores. Revistas “A Tradição” (1899 – 1904), “Lusitana” e “Águia” (finais século XIX,
início século XX).
7
“Quasi exclusivos dos trabalhadores ruraes”, “todos vestidos com os seus garridos trajos
campesinos”. “Essa pobre e soffredora gente (…) encontra no canto coral como que um doce
lenitivo”. “Os grupos de cantadores attingem ás vezes enormes proporções”. “Não é raro que
os grupos reúnam tresentas e quatrocentas pessoas, d’ambos os sexos” Nunes, M. D. (1902).
"“Costumes da minha terra - Os Descantes”." A Tradição 4(IV)..





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trabalhos rurais e na deslocação entre estes e as suas casas. “Não [se] dizia só
canta mulher, só canta homem”, refere Ana Mestre (ex-elemento de um grupo
feminino extinto de Pedrógão do Alentejo, dedicada à recolha de tradições
orais). Júlia Ferro (Grupo Coral de Odemira) relembra: “aqui na minha casa
todos cantávamos. Na casa dos meus avós todos cantavam, faziam um grupo,
porque cantava a minha avó e o meu avô e cantava o meu pai, tios e tias, tudo
cantava muito bem (…) Da parte de baixo estava um casal que também tinha
muitos filhos, sete ou oito filhos, e eles e o pai tudo cantava”. Nos bailes
“cantávamos 40 ou 50 letras – à namorada, os amores acabados e concebidos…
– e depois íamos à moda que era a letra com que foi feita a moda. E depois dali
a gente cantava as letras que queria. Fazíamos versos à namorada, elas faziam à
gente. Depois cantávamos o resquebre da moda”, explica José Carlos Castro
(Grupo Coral Amigos do Barreiro). Na infância, da sua casa em Beja, Joaquim
Soares (Cantares de Évora) observava os ranchos de trabalhadores rurais:
“Vinham de madrugada, começavam-se a ouvir ao longe a cantar e era um
colorido sonoro que incluía homens e mulheres e por vezes miúdos que vinham
agarrados aos pais”.
Apesar de hoje o espectador comummente identificar o alentejano e o seu
cantar com o grupo coral, os grupos mais antigos que ainda hoje estão no
activo datam apenas dos anos 20 do século XX
8
Na sua génese esteve não .
raramente a intervenção e promoção institucional. É provável que alguns destes
primeiros grupos tenham sido fundados segundo o projecto político
nacionalista do período da Ditadura Militar (1926 - 1933) e do Estado Novo –
regime político autocrático inspirado pelos regimes fascistas europeus, entre
1933 e 1974 – de “consolidação da ideia de nação em Portugal” (Carvalho
1996)
9
O primeiro grupo de Aljustrel foi fundado no Sindicato Mineiro, o .

8
Grupo Coral do Sindicato dos Mineiros de Aljustrel (1926) Grupo Coral Guadiana de Mértola
(1927) Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa (1928) Rancho Coral e
Etnográfico de Vila Nova de S. Bento (1929). O grupo coral mais antigo fora dos limites
geográficos do Alentejo ainda no activo foi fundado em 1950: Grupo Coral Alentejano da
Sociedade Filarmónica Recreio Artístico da Amadora.
9
Segundo o autor “a utilização da música como símbolo do nacionalismo em Portugal atingiu
o seu auge durante o período de vigência do (…) Estado Novo, idealizado e concretizado por
António de Oliveira Salazar entre os anos de 1926 e 1959”. Este nacionalismo “promove o
anonimato e recusa o individualismo em prol do mito do esforço e da criação colectivos”.


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Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
sindicato único (“as pessoas antigamente quando trabalhavam na mina eram
obrigados a ser do sindicato”, como conta um elemento do grupo). Os grupos
de Serpa, Amareleja e Reguengos de Monsaraz foram fundados no seio de
Casas do Povo; o grupo de Alcáçovas é fruto da criação de nova colectividade
dirigida aos trabalhadores rurais. Por seu turno, o grupo de Peroguarda
apresentou-se no Concurso da “Aldeia mais portuguesa”
10
, tendo, na sua
opinião, contribuído para a eleição de Peroguarda como a “Aldeia mais
portuguesa do Baixo Alentejo”
11
Desde a fundação de grupos promovem-se .
igualmente festivais e concursos em que os grupos são chamados a participar
12
.
José Roque, dos “Ceifeiros de Cuba”, conta como o traje etnográfico “aparece
quase como uma obrigação para poder participar em determinado momento
num espectáculo” da Casa do Alentejo. O grupo, até aí Grupo de Cantadores de
Cuba, adopta então um traje de ceifeiro e altera a sua denominação.
A formalização do cante em grupos corais organizados como concorrente do
canto espontâneo e informal permitiria maior controlo de uma prática
susceptível de transformar-se em expressão da contestação. Não raras vezes,
como os nossos informantes relatam, a Guarda deslocava-se às tabernas e aos
lares para impedir o canto informal.
É neste contexto de “domesticação” e de instrumentalização política do Cante
que a mulher se vê arredada da sua prática formal. O Cante praticado e
transmitido entre gerações em contextos informais é entoado por homens e
mulheres; nas fileiras dos grupos corais perfilam homens
13
A presença da .
mulher continua a ser referenciada, mas apenas em grupos informais. Como
(Giacometti and Lopes-Graça 1981) diriam, a polifonia alentejana “é de uso

10
Concurso promovido pelo Secretariado de Propaganda Nacional do Estado Novo em 1938
que pretendia aferir “A Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” avaliando a “maior resistência a
decomposições e influências estranhas e o estado de conservação no mais elevado grau de
pureza” de um variado número de elementos como habitação, traje, comércio, tradições, etc.
(regulamento de 07/02/1938).
11
No concurso estavam representadas apenas duas aldeias do Baixo Alentejo. Salvada, no
concelho de Beja, era a outra aldeia a concurso.
12
Michel Giacometti seria bastante crítico ao afirmar que “proliferam concursos baseados em
critérios duvidosos e destinados a favorecer a proliferação de grupos corais organizados que, na
sua generalidade, tendem para a banalização do canto nas suas formas poéticas e musicais”
(citado em artigo na Revista Alentejo nº 22, 2008).
13
A única excepção, durante muitas décadas, seria o Grupo Coral e Etnográfico "Alma
Alentejana" de Peroguarda, grupo misto fundado em 1936.


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quase exclusivo dos homens”, excepção feita a “certas modas alentejanas de
trabalho, que admitem, respectivamente, vozes masculinas e femininas” (logo,
em situações de canto informal). Enquanto o cante informal entra em declínio
dada a falência dos modos tradicionais de transmissão do saber – em que os
portadores da tradição transmitem os seus conhecimentos às gerações futuras
em várias situações privadas e até íntimas – e se aprofundam as mudanças nas
formas de lazer e sociabilidade, os grupos corais assumem particular
importância no universo do Cante. Para quem esquece que os grupos corais são
inovações do início do século XX e neles intui o veículo por excelência do
Cante, o modelo do passado a copiar, a mulher não canta. O que hoje é uma
evidência para a maioria – a mulher sempre cantou – foi durante muitos anos
negado por quem atribuiu aos grupos corais o estatuto de portadores únicos da
expressão do cante: se nos grupos nunca houve mulheres, então é porque a
mulher não tem lugar neles.
À ausência feminina nos grupos formais não é alheia a visão que em meados
do século XX estabelecia o papel da mulher, visão que perdurou até há pouco e
foi dominante pelo menos até ao terceiro quartel do século. Um exemplo
elucidativo pode ser encontrado num dos cartazes de propaganda política de
1938 intitulados “A Lição de Salazar
14
”. O último destes, “Deus, Pátria,
Família: a Trilogia da Educação Nacional”
15
, espelha exemplarmente o que se
pretendia da mulher. Na gravura, o homem – pai, chefe de família – chega do
seu trabalho rural, sendo recebido entusiasticamente pelos seus filhos, estando
a mulher ocupada nos seus afazeres domésticos
16
O homem movimentava-se .
no exterior, a mulher estaria confinada ao lar. O Padre Marvão escreveria ainda
em 1987: “Toda a gente o sabia cantar [o Cante], novos e velhos, homens e
mulheres. Era um património comum a todos os alentejanos. No entanto a

14
Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, entre 1932 e 1968, instituidor do Estado Novo
15
Note-se o paralelismo com a divisa de propaganda do regime fascista francês de Vichy e
com o seu “projecto cultural” (1940-1944) “Travail, Famille, Patrie” Faure, C. (1989). Le
projet culturel de Vichy: Folklore et revolution nationale 1940-1944. Paris, CNRS. Apesar de o
“Trabalho” ser aqui substituído por… “Deus”.
16
No “Livro da Primeira Classe” uma das lições era “A dona de casa”: “Emilita é muito
esperta e desembaraçada, e gosta de ajudar a mãe. - Minha mãe: já sei varrer a cozinha,
arrumar as cadeiras e limpar o pó. Deixe-me pôr hoje a mesa para o jantar. - Está bem, minha
filha. Quando fores grande, hás-de ser boa dona de casa”.


As mulheres no Cante alentejano 9/27

sociedade de então com as suas mais que justas exigências morais, na defesa da
mulher e da sua dignidade, só em certas circunstâncias permitia que esta se
juntasse aos homens para cantar, em grupo, como nos «Balhos», nos
«mastros», na igreja ou nas romarias”. Esta “defesa” da dignidade feminina
impede, por exemplo, o acesso a espaços de lazer como as “vendas” (ou
tabernas), que por isso se tornavam exclusivamente masculino – onde o Cante
antes imperava – e confina o canto, no feminino ou em conjunto com o
homem, à intimidade ou a situações pontuais onde a convivência entre géneros
seria considerada aceitável. E não deixa mesmo assim de afirmar: “Mas o cante
alentejano é um cante quase exclusivo dos homens (…) O cante alentejano é
um cante viril próprio de personalidade fortes” (ibidem). Aí está, para o que
concerne ao “património comum”, a linha de partilha tal como a encara o Padre
Marvão…
A formalização de grupos corais não só arredou a mulher do Cante como
conduziu a mudanças na prática musical em si mesma – no que pode ser
entendido como uma ruptura e um distanciamento face à prática corrente até à
data – e diluiu outras práticas musicais locais e inclusivamente repertórios que
não cabiam no seu apertado crivo. A apresentação em grupos formais para
novos públicos e a promoção de concursos e outras competições entre grupos
favorece uma nova forma de apresentação da prática – que adquire os
contornos que hoje lhe conhecemos (uma cantiga, uma moda, outra cantiga, a
mesma moda) – e subordina a prática corrente do Cante ao molde do
espectáculo. Um espectáculo no qual, por décadas, a mulher não participou…
até 1979.
1979: Grupo Coral Feminino “Flores de Primavera” de Ervidel
O Cante formal teria de esperar alguns anos para observar a multiplicação dos
grupos corais. Após a revolução de 25 de Abril
17
surge uma série de grupos
corais (provavelmente uma centena de grupos entre 1974 e o final da década
seguinte). Com a decadência da agricultura manual e a consequente migração

17
Ou “Revolução dos Cravos” marca a transição para o regime democrático


As mulheres no Cante alentejano 10/27

Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
dos alentejanos, os grupos corais cruzam os limites do Alentejo. Dos antigos
grupos muitos herdam a preocupação “etnográfica” (apresentação em cena com
trajes regionais evocativos dos modos de vestir dos trabalhadores rurais) e
quase todos adoptam o esquema formal de apresentação das modas. Algumas
décadas após a sua “invenção” observa-se um fenómeno de localismo e cada
terra, cada freguesia quer ter o seu grupo.
Em 1979 o Cante, não sendo propriedade masculina, continua a ser veiculado
por grupos corais masculinos. Neste ano, um grupo de mulheres de Ervidel
desloca-se nas “galérias” a uma manifestação em Baleizão. Como sempre, vão
cantando pelo caminho. Com elas vai o Senhor Amaro
18, que lhes lança um
desafio: “ó moças e então se a gente fundasse um grupo?”. A primeira reacção
foi negativa, de estranheza: “Fundar um grupo de mulheres? Ah, isso é uma
grande crítica, que isso é só grupo de homens não é de mulheres”. À insistência
de Amaro um grupo de mulheres acede
19
e posteriormente grava uma moda. O
resultado agrada: “ele achou jeito” e as mulheres angariam novos elementos.
“A gente gostava de cantar e cantávamos no campo”. Antes da formação do
grupo cantavam informalmente nos mastros, nos bailes de roda, na rua.
“Juntávamos um grupo de mulheres e cantávamos aí numa esquina qualquer”,
o que gerava algumas críticas. Mas “a gente não se importava”. “Levávamos a
vida a cantar”.
A primeira actuação enquanto grupo dá-se a 18 de Maio de 1979 em Alfundão.
Na segunda, em Porto Brandão, pernoitam fora de casa. Alguns maridos
acompanham-nas. Do seu repertório constam modas veiculadas pelos grupos
corais masculinos, muitas modas que pós-revolução que revelam a úbere
criação da época, e algumas modas “do campo”, modas igualmente entoadas
em contexto de trabalho. Em convívio com os grupos corais masculinos são
sempre bem recebidas, o que contrasta com a recepção que tiveram na sua terra
de origem.

18
Amaro António Rosa Santana, antigo cantador num grupo coral de Ervidel à data já extinto e
primeiro ensaiador do grupo
19
Emília Neves, Natividade Constantino e Maria Pereira Rodrigues são consideradas,
juntamente com Amaro Santana, as fundadoras do grupo

As mulheres no Cante alentejano 11/27

Com elementos naturais de Ervidel, de “20 e tal, quase 30 [anos], gente nova”
e casada, as críticas evidenciam a interpretação corrente do papel da mulher: a
mulher “tinha que tratar dos filhos, tinha que fazer o comer” e nem as outras
mulheres “achavam jeito”. “Nessa altura eram os nossos que reagiam mal e era
as pessoas que reagiam mal, as de fora também”, diz Antónia Crispim. A
aceitação veio mais tarde, “revirou-se assim quando houveram mais grupos”.
“O primeiro [grupo coral feminino] levou ali em forte”; “foi a gente que deu o
primeiro passo. E a seguir vieram os outros”. O orgulho destas mulheres no seu
grupo precursor é notório. Foi “uma grande batalha”, “com tanta crítica que a
gente apanha, famas de tudo…”, refere Maria Teresa, actual presidente.
Ao longo dos anos outros grupos femininos lhe sucedem, suscitando cada vez
menos críticas. Primeiro em Castro Verde, depois nas Alcáçovas. “As
primeiras levam sempre mais, as segundas já nem tanto”. Quando surgiram
novos grupos femininos, “assim já aceitaram”. O que está em causa com toda a
evidência, a propósito do direito de cantar em grupo e de participar em
espectáculos, é a liberdade de movimentos das mulheres, a sua liberdade.
Numa reportagem de uma televisão nacional em 2009, Maria Baião, elemento
do Grupo Coral e Etnográfico Feminino “As Camponesas de Castro Verde”
(segundo grupo coral feminino a surgir, em 1984) explica que “este coro foi
uma maneira de mostrar aos homens que as mulheres também têm de ser
livres”. “Nem todos os homens consentiram”, “foi uma grande luta”.
Impacto dos grupos corais femininos
Só no final do século XX e princípios do século XXI se observa a proliferação
de grupos corais femininos. (Pedrosa 2009) refere que “um inventário realizado
em 1999 pelo Instituto de Etnomusicologia de Lisboa dava conta da existência
de 214 grupos de cante alentejano activos no País. Desses, 12 eram mistos, oito
femininos, sete infantis e os restantes masculinos”. Por esta altura muitos
grupos femininos davam os primeiros passos (não estando, portanto, ainda
referenciados). A mulher era ainda um elemento muito minoritário. Sendo

As mulheres no Cante alentejano 12/27

impossível referenciar com acuidade todos os grupos
20
, é no entanto possível
determinar que na viragem do século, entre 1995 e 2005, foram fundados pelo
menos 25 grupos corais femininos que ainda hoje se mantêm no activo. Nos
últimos anos (desde 2006) surgiram pelo menos 11. O número de grupos
femininos ascende hoje a mais de meia centena.
“Se os homens cantam em grupos formais, porque não as mulheres?” terá sido,
porventura, a questão que a maioria dos primeiros grupos femininos colocou,
espelhando o anseio de inserção formal feminina no Cante. À semelhança dos
grupos corais masculinos, a proliferação de grupos femininos resulta
igualmente de uma lógica de territorialidade que desde cedo o Cante assumiu.
De facto, observamos a necessidade sentida por cada grupo em representar a
sua terra e tradições locais, insistindo numa formação “endógena”, constituída
por elementos de conterrâneos. O princípio do grupo micro-localizado (da
freguesia, da aldeia, da vila…) promove a fundação de um número alargado de
grupos (“se as outras têm grupo porque não nós?”, diriam algumas mulheres).
Como explica João Ramos, responsável do Grupo Coral Feminino da ADASA
– Santo Amador (Moura), “foi também uma forma de encontrar um espaço
alternativo para as mulheres porque nestes sítios pequeninos há sempre um
espaço que é dos homens, onde os homens podem sair, onde podem conviver,
que é a taberna. Mas é um espaço vedado às mulheres. As mulheres não têm”
um espaço público que lhes seja próprio, nem podem partilhar o espaço dos
homens
21
.
Inevitavelmente, como de início assinalávamos, a inclusão da mulher no Cante
formal, ao reforçar o número de praticantes, teve impacto na prática em si.
Mais que uma conquista pelo acesso a uma prática masculina, a sua inclusão
representa uma mudança na prática musical formal. Ao impor uma nova forma
de socialização, resgatar tradições e apresentar modas entretanto relegadas ao

20
O desaparecimento de vários grupos nos últimos anos, mas também o surgimento de novos
grupos, a fusão entre alguns, o recrutamento de elementos femininos por parte de grupos
masculinos e vice-versa, inactividades temporárias, existências efémeras e estatutos
indeterminados imprimem uma dinâmica ao Cante Alentejano que o caracteriza enquanto
universo em constante mutação.
21
Embora tenhamos observado a presença de mulheres nestes espaços masculinos (Alvito).
Mas são mulheres já de uma certa idade, o que atenua o carácter transgressivo dessa presença.

As mulheres no Cante alentejano 13/27

canto espontâneo, a inserção da mulher conduz a uma reestruturação da prática,
das suas normas e dos seus limites. Não obstante o papel desenvolvido pela
mulher, mais que a actividade feminina em si, é a mudança de circunstâncias
que promove essa reestruturação; ou seja, a introdução de elementos até então
“estranhos” ao Cante formal, obriga a colectividade a repensar o seu
património e a sua salvaguarda.
Muitos destes grupos femininos vêm revitalizar não só peças do repertório do
cancioneiro tradicional votadas ao abandono pelos grupos formais, como outras
tradições locais entretanto caídas em desuso. Grupos de mulheres apresentam
modas que escapavam ao crivo dos grupos corais masculinos (como algumas
modas de trabalho, baile e religiosas) e envolvem-se na recuperação de outras
tradições alentejanas como os mastros, o carnaval, o canto das almas, as
comadres, as modas dançadas, etc. Muitos dos grupos corais masculinos
apresentam o seu repertório “tradicional” ou modas compostas por membros do
grupo, restringindo a sua actuação ao Cante. As mulheres, ao invés, trazem
para o Cante formal modas esquecidas, recriam tradições há muito
abandonadas, dançam, participam nos desfiles de Carnaval, etc. Um forte
sentido lúdico inspira as suas intervenções. Em Pedrógão, mulheres remexiam
os baús das suas mães e avós procurando outros trajes e indumentárias a expor
aos demais; em Santa Vitória recria-se a tradição das “Maias”; em Moura o
grupo (“Brisas do Guadiana”) concebe um espectáculo designado “prata da
casa” onde apresentam um espectáculo de variedades; em Malavado, as
“Ceifeiras” aliam as modas aos gestos próprios do trabalho rural. “Os homens é
para cantarem e depois é o café mas muitas outras coisas não gostam muito de
participar, tirando uma coisa ou outra. E as mulheres já são diferentes. Eu
penso que as mulheres têm mais aptidão para estas coisas, para se divertirem e
para organizarem estas coisas”, diz Lídia Rosado (Grupo Coral Feminino
“Flores de Abril” de Granja), grupo fundado após a participação de um grupo
de mulheres no Carnaval.
Por outro lado, a promoção da competição entre grupos desde cedo impeliu os
grupos corais a apresentar modas originais, procurando destaque e uma
sonoridade única. A criação de repertórios originais burilados neste contexto

As mulheres no Cante alentejano 14/27

específico – de e para os grupos corais - distancia o cante formal do praticado
nas esferas informais. Com a introdução das mulheres, o repertório dos grupos
corais alarga-se. O Cante abarca novas peças musicais e algumas modas caídas
em desuso voltam a ouvir-se. À inovação fomentada pelos grupos corais
preexistentes, as mulheres acrescentam o repertório tradicional entretanto
abandonado.
Colaço Guerreiro explica a diferença de repertórios pela existência de dois
tipos de modas: as cantadas nos trabalhos rurais por homens e mulheres e as
entretanto criadas para servir aos grupos corais (mais “pesadas”). Enquanto as
primeiras eram entoadas no canto informal quotidiano (e entretanto esquecidas
pelos grupos corais até as mulheres neles entrarem), as segundas impuseram-se
aquando da fundação dos grupos corais masculinos. Por isso “devem os Grupos
Corais femininos cantar as modas que se adaptam à natureza das suas vozes e
deixarem aos homens as tais modas do segundo tipo que alguns mestres
fizeram para serem cantadas exclusivamente por eles, fora do trabalho, dentro
dos seus Grupos, depois da sua estruturação como corais”, concluiu (Guerreiro
2005). O que observamos, porém, é que estas ditas modas “pesadas” constam
igualmente dos repertórios femininos, muitos deles também ensaiados por
mestres (homens) e com modas originais. O facto de todo este repertório ter
estado inacessível às mulheres durante décadas (porque elas não participavam
nos grupos), não impediu que, apesar de algumas opiniões contrárias, tenha
sido adaptado às vozes femininas. Não havendo anteriormente mulheres nos
grupos corais, as modas entretanto criadas para os grupos formais, seriam, para
alguns, propriedade dos homens, exclusivamente criadas por e para homens.
Contudo, sob outro prisma, elas não seriam um exclusivo masculino, antes
modas criadas exclusivamente para grupos, sejam eles masculinos ou
femininos.
Este movimento de resgate de modas – cedidas ao canto individual, não formal
ou até esquecidas – e de tradições, promove uma visão holística do património
cultural imaterial e uma nova compreensão da memória colectiva futura. Hoje,
vários grupos (femininos, masculinos e mistos) introduzem no seu repertório o
cante ao menino, os reis e as janeiras, ampliando assim a tradição musical que

As mulheres no Cante alentejano 15/27

pretendem manter e deixar às gerações futuras
22
E a “Moda – Associação do .
Cante Alentejano” – fundada em 2000 por mestres, dirigentes e cantadores de
vários grupos corais – pretende hoje “apoiar e incentivar toda a pesquisa e
recolha do cancioneiro tradicional alentejano, dos valores etnográficos de cada
Região e da história do ‘cante’, recuperando memórias que preservem a
genuinidade do cantar”
23
Observemos no discurso não só a ênfase dada à .
inventariação como às formas de cantar. Esta “genuinidade do cantar” implica
não só assumir a importância das vozes femininas, como da sua união com as
masculinas
24
As “novas formas de cantar” que foram necessariamente .
introduzidas pelas mulheres (pois há que adaptar as suas vozes ao Cante e ao
esquema formal entretanto adoptado) seriam não mais que um regresso a uma
prática entretanto decadente. Contudo, as mudanças impostas pelos grupos
corais na forma de cantar a moda, obrigaram a mulher a adaptar o seu canto.
As novas formas de cantar, apesar da evidência de que outrora homens e
mulheres haviam cantado juntos, seriam efectivamente novas no Cante formal.
Novas porque a mulher não havia pertencido a grupos corais, porque não
cantara as modas concebidas no seio dos grupos, porque as modas apresentadas
em grupos corais haviam sido exclusivamente interpretadas por elementos
masculinos. A sonoridade do Cante ganha novos contornos, quer quando a
mulher canta no feminino, quer quando as suas vozes são aliadas às vozes
masculinas. É comum (entre alguns observadores e elementos dos grupos)
destacar a menor lentidão do canto feminino. Esta observação resulta
provavelmente da execução por parte dos grupos corais femininos dessas
modas outrora cedidas ao canto informal (de trabalho, baile), por vezes
entendidas como “mais ligeiras” (porventura por estas não terem sofrido o
ajustamento ao canto coral frequente nos grupos corais masculinos
25
.(

22
Organizam-se, a par dos encontros de grupos tradicionais (desfiles e actuações em palco que
entretanto deixaram de incluir concursos), eventos dedicados a este novo repertório.
23
Ver objectivos da Moda em www.cantoalentejano.com
24
“Desde o início temos homens e mulheres a cantar porque essa é a verdade. A única verdade
do cancioneiro tradicional é homens e mulheres a cantarem em conjunto”, afirma Joaquim
Soares, actual presidente da Moda.
25
A esse propósito Joaquim Leandro Grosso (Mestre “Minuto”) conta como um anterior
Mestre do Grupo Coral da Casa do Povo da Amareleja, adaptou a “Moda da Lavoura”, outrora

As mulheres no Cante alentejano 16/27

O impacto da introdução das mulheres não se repercutiu unicamente no Cante.
A existência de grupos organizados de mulheres permite, antes do mais, que a
mulher aceda a um espaço de socialização que outrora lhe estava vedado. Uma
dimensão que assume a maior importância nos grupos corais é a teia de
relações sociais desenvolvida entre os grupos e que pressupõe reciprocidade. É
comum a organização, por parte da maioria dos grupos, de desfiles e encontros
nos quais são chamados a participar os seus congéneres. Estes encontros
desenvolvem-se numa lógica de “intercâmbio”: é importante convidar para
assim se fazer convidado
26
Estes circuitos são espaços de socialização que se .
revelam da maior importância ao permitir o cumprimento da finalidade do
ensaio: a actuação e exibição dos grupos. Mas não só. Para além da promoção
das localidades e acentuação das dinâmicas locais, os encontros permitem que
os grupos e os seus elementos desenvolvam um conjunto de relações benéficas
para o Cante (porque os grupos se ouvem mutuamente) e para os cantadores
(porque permite que não só ocupem os seus tempos livres, proporcionando-lhes
novos conhecimentos, como desenvolvam relações interpessoais). Ao ingressar
neste sistema de trocas, a mulher acede a um espaço outrora exclusivamente
masculino. É comum a organização atender à diversidade de grupos existentes,
convidando grupos diferentes (de diferentes locais, com diferentes formações,
visualmente diferentes, alguns instrumentais, etc.). Para encontros promovidos
por grupos corais femininos são convidados grupos corais masculinos e viceversa. Portanto, não só a mulher acede a um novo espaço, como o partilha com
o homem. O convívio, outrora exclusivamente masculino, dilui hoje o espaço
entre homens e mulheres. Frequentemente nos jantares de convívio destes
eventos o cante espontâneo toma o seu lugar e os cantadores reúnem-se,
geralmente em roda ou em torno de uma mesa, para cantar. Nesse canto
participam homens e mulheres, de grupos corais distintos. De notar as
afirmações do primeiro grupo feminino: houve sempre vozes contrárias à sua

cantada individualmente em contexto laboral, ao seu grupo coral, tendo necessariamente de
realizar um conjunto de modificações que a ajustassem ao novo contexto.
26
Este intercâmbio, numa lógica de reciprocidade, implica que os grupos retribuam os convites
que receberam. Assim, cada grupo irá convidar não só os grupos em cujos encontros já
participaram mas também grupos de localidades onde pretendem ir (convidar, retribuir e
“fazer-se convidado”)

As mulheres no Cante alentejano 17/27

organização mas sempre foram muito bem recebidas pelos seus congéneres
masculinos.
Na viragem do século estes grupos de mulheres que cantam em grupos corais
foram entendidos como um novo fôlego para um Cante Alentejano que se
encontrava envelhecido, ameaçado pelo decréscimo previsível do número de
grupos corais e, dada a média das idades (acima dos sessenta anos), de número
de cantadores por grupo. Para alguns, os grupos corais femininos devolviam a
voz à mulher, reconhecendo-lhe a devida importância e repondo a “verdade”
do Cante. Mas para outros, o papel da mulher no cante continua a ser entendido
como um espaço reservado, diferenciado: dizer que a mulher tem o seu lugar
no Cante não é o mesmo que dizer que a mulher tem lugar nos grupos. Para
estes, a mulher não deve organizar-se em grupos pois até então neles não tinha
lugar (ignorando provavelmente que os grupos corais masculinos são eles
próprios uma inovação relativamente recente). Por outro lado, cantar em
conjunto soa mal, há que fazer a distinção de repertórios…
Aceitação e resistência
Numa visão de conjunto, o acesso das mulheres ao cante é encarado de maneira
diferente consoante se trate de grupos corais exclusivamente femininos ou da
formação de grupos mistos ou ainda da aceitação de mulheres nos grupos antes
exclusivamente masculinos. Já vimos que a primeira forma de acesso com
relevância pública surge com os primeiros grupos de mulheres após 1979 e a
sua multiplicação nas décadas seguintes. Mas nem por isso a combinação de
vozes masculinas com vozes femininas tem aceitação imediata: as mulheres
também cantam decerto, mas elas cantam de maneira diferente. As diferenças
são formuladas de diversas maneiras: alguns, como veremos, afirmam que os
reportórios são (devem ser) diferentes (há modas “próprias para as mulheres” e
modas que se adaptam apenas às vozes dos homens). Outros realçam as
dificuldades de combinar vozes masculinas e vozes femininas: as diferenças de
altura (as mulheres cantam em vozes “mais altas”, ou seja mais agudas), ou de
timbre, tornam difícil, para alguns, a combinação dos dois sexos.


As mulheres no Cante alentejano 18/27

“As mulheres não podiam relacionar-se, colectivamente, com o cante fora do
trabalho e por isso, quando o trabalho nos campos acabou, calaram-se as vozes
femininas que com tanto fervor e sentimento o tinham interpretado. E bastaram
apenas duas ou três décadas para se esquecer o papel e a importância das vozes
femininas no cante. Da memória apagaram-se os cantes vibrantes das ceifeiras
e das mondadeiras e já se insinuava, já se dizia, já se afirmava que o Cante
Alentejano não era para mulheres”, afirma Guerreiro (2005). Esta atitude
perante a inclusão das mulheres em grupos tem vindo a ser diluída mas hoje
encontram-se novos argumentos quer para recusar a igualdade entre grupos
corais femininos e masculinos, quer para declinar a existência de grupos corais
mistos. Entre a aceitação e a recusa, há quem pretenda colocar a mulher num
espaço diferenciado, exclusivo e distinto do masculino, pois estes grupos
femininos não são iguais.
“Desde o início temos homens e mulheres a cantar porque essa é a verdade. A
única verdade do cancioneiro tradicional é homens e mulheres a cantarem em
conjunto”, diz Joaquim Soares, mestre do Cantares de Évora – Coral
etnográfico, misto desde a sua fundação em 1979. Mas, para alguns, cantar em
conjunto soa mal: “há mulheres a cantar muito bem também mas só que aqui
nos grupos corais eu não sou muito defensor da mistura de vozes (…) Em
uníssono, à mesma voz, o timbre da mulher como que desafina logo à partida a
voz dos baixos e obriga-me a tonalidades dos temas em que estes depois
perdem beleza”, diz Tolentino Cabo (Grupo de Cante Tradicional “Os
Almocreves”). “Gosto muito de as ouvir cantar, adoro ouvir um grupo
feminino mas misturado não. Por várias coisas. Temos aí exemplos (…) têm lá
quatro ou cinco mulheres e o alto tem dificuldade por causa do som da mulher.
Depois elas não sabem controlar, por vezes não sabem controlar, vão atrás”,
corrobora José Morais (Casa do Povo de Reguengos de Monsaraz).
Por outro lado, argumentam, “a mulher tem um timbre de voz de uma maneira,
há modas lindas para elas. E o grupo coral do homem tem outras que são
mesmo feitas para ele, que as mulheres não conseguem lá chegar de maneira
nenhuma” (José Morais). Concorda, pois, com Colaço Guerreiro: a mulher não
deve cantar o mesmo que o homem e há que fazer a distinção de repertórios.

As mulheres no Cante alentejano 19/27

Joaquim Leandro Grosso (mais conhecido por Mestre Minuto), mestre de um
grupo coral masculino e de um grupo coral feminino, também: “Há modas que
estão mais próprias para as mulheres, há modas que estão mais próprias para os
homens”. “Muita gente não faz essa definição que eu faço porque eu percebo e
sei o que estou fazendo”. “Quando eu faço modas para as senhoras é sempre
assim de outra maneira”. Curiosamente, no seu grupo coral “masculino” estão
incluídas três mulheres. Quando Mestre Minuto decidiu, em 1999, acolher um
grupo feminino na Casa do Povo da Amareleja e tornar-se seu ensaiador, “os
homens não as queriam cá. Havia aí três ou quatro homens [que] não queriam o
grupo das mulheres”. Prevendo futuros desentendimentos resolveu falar com as
mulheres: “’Primeiro vão fazer uma coisa. Vão dizer aos vossos maridos para
onde vêm cantar’. Porque as mulheres antigamente, a gente sabe, eram objecto
de brincadeira, não podiam sair de casa… os maridos… e havia aquele ciúme,
aquela coisa. A gente até, encontrar uma mulher assim num café, começava
logo a olhar como se ela fosse assim mal comportada”. “Salazar deixou-nos um
bocado – muito – atrasados, principalmente as mulheres”, lamenta. É “a deixa
que lhes deixou o Salazar, que queria aquela coisa mesquinha. A mulher é um
ser como um homem”.
É possível que as dificuldades que são assim diversamente enunciadas
recubram problemas técnicos reais que decorrem do modo de distribuição das
“partes” na forma que se tornou norma quase universal no Cante: enquanto o
“alto” vai cantar uma linha melódica que segue em geral as “segundas” a uma
terceira superior, mas pode “subir” à quinta superior em relação ao coro, as
mulheres vão, em geral cantar à oitava superior em relação ao mesmo coro.
Quando por vezes, como tivemos a possibilidade de observar, o papel de “alto”
é distribuído a uma mulher, ela vai cantar a sua parte a uma oitava mais uma
terceira (ou uma quinta) “acima” do coro principal (o dos homens). Para além
do facto que as poderosas vozes masculinas tendem a cobrir a voz feminina do
“alto”, a distância aparente entre vozes masculinas do coro e a voz feminina do
“alto” parece excessiva
27
,É claro que esses problemas poderiam, em princípio .

27
Mestre Minuto explica que, na execução de algumas modas, esta distância é deliberada.
Designa-se “requinta” e pretende elevar ainda mais o tom do alto (é a “fala fina”). Antes da

As mulheres no Cante alentejano 20/27

ser resolvidos: mas a solução exigiria uma técnica de condução dos coros de
que a maior parte dos grupos não dispõe. Os hábitos criados ao longo da
história do Cante formal em grupos corais não incluem a formação de naipes
(masculinos, femininos) e a sua equilibragem. Donde o facto que um problema
que, ao observador exterior se apresenta como um problema exclusivamente
técnico, é percepcionado como um problema de acesso das mulheres ao cante,
de especialização dos repertórios, de separação dos sexos.
José Joaquim Oliveira (Grupo Coral Etnográfico do Ateneu Mourense) recusa
a inclusão de mulheres argumentando que se trata de dois cantes diferentes. O
cante dos grupos corais, “o cante em si, o cante à capela, é um cante diferente.
É um cante diferente no aspecto da sua apresentação, como ele é exposto e
como ele é depois interpretado”. “Requer um estudo das vozes, enquadramento
das vozes, requer uma melodia completamente diferente, uma tonalidade
completamente diferente e que faz com que o cante alentejano, o genuíno cante
alentejano de grupos corais, era cantado só por homens. Se a gente for a ver, a
mulher não participava nos cantes, tirando um ou outro bailarico ou outra moda
que era mais ritmada. De resto nunca participavam mulheres. Portanto é um
tom muito grave, muito cheio (a gente chama ‘o cheio’ àquele tom grave,
característica mesmo genuína do cante alentejano). De onde é que vem? Desde
que começou o homem, depois de trabalhar, juntava-se nas tabernas e aí
começou de facto… Começar um copinho, começar a cantar e a tentar corrigirse uns aos outros e a haver aquele cante espontâneo das tabernas”. Por isso
mesmo, as tabernas seriam os locais privilegiados desse “cante diferente”, de
onde saíram os homens para os grupos corais. A mulher não tinha lugar na
taberna, portanto não é portadora do “genuíno cante”. Mas para Guerreiro
(2005) “podemos eleger as mondas e as ceifas como as escolas por excelência
da moda alentejana. Por isso, sabendo que eram os homens, as mulheres e as
crianças quem trabalhava nas ditas fainas, sabemos também, que eram eles
quem desde sempre e indistintamente, interpretava a moda, integrando-a como
factor transversal ao seu labor”.

introdução das mulheres em grupos formais, esse papel era atribuído aos mancebos do grupo
que ainda não tinham mudado a voz.

As mulheres no Cante alentejano 21/27

Como Mário Feliciano (Grupo de Cantares da Associação de Reformados e
Idosos de Vila Nova de Milfontes) observa “infelizmente ainda existe alguma
relutância (…) em misturar grupos que tenham mulheres e homens”.
“Antigamente as coisas eram assim, as pessoas nos bailaricos cantavam
homens e mulheres, dançavam homens e mulheres, portanto, cantavam as
mesmas modas e as coisas funcionavam. Porque é que não hão-de funcionar
agora? O que é que se passa? Qual é a mudança que houve, que tipo de
mudança é que houve na mentalidade das pessoas…?”. Apesar desta evidência,
nem sempre é aceite a inclusão da mulher em grupos outrora masculinos. José
Sobral (Grupo Coral de Vila Nova de Milfontes) argumenta que “não é questão
de que não se goste das mulheres”, mas “as senhoras têm uma voz que abafa as
dos homens, que é o mais fino. E então ouve-se mais, a do homem ouve-se
menos. E há elementos que não, que se sentem, não é inferiorizados mas, quer
dizer, não se sentem bem porque não ouvem a voz deles”.
Mas a atitude de recusa funda-se igualmente no papel que é atribuído à mulher,
a mãe, a esposa. A “condenação” da mulher cantadora é ainda hoje observada
em alguns meios rurais pequenos, como refere Ana Marques (Grupo Coral
Feminino “As Papoilas” de Santo Aleixo da Restauração), que sente a crítica
de alguns conterrâneos, homens e mulheres. É um facto que, longe de esta
discriminação ser feita unicamente pelos homens, ela é muitas vezes feita pelas
demais mulheres. “Há pessoas, mesmo das nossas idades, que não vão porque
têm vergonha e outras porque têm os maridos que não as deixam. A gente, os
nossos maridos não nos estorvam (…) E se estorvassem ganhavam as
mesmas”. A mulher que sai de casa para cantar nem sempre é bem vista. Para
Maria José Barriga (2009) "é o próprio circuito feminino que ainda coloca
muitos obstáculos a essa presença”. As críticas partem “da vizinha do lado, da
tia, da amiga".
José Feliciano, do mesmo grupo, explica que a inclusão de mulheres significa a
perda de uma esfera de sociabilidade em que os homens estão mais libertos, em
que podem “beber os seus copos e fazer os seus floreados” sem ter a sua
“pele.” (“a minha pele é a minha mulher”) por perto. Para ele, é esta
necessidade que impede uma disciplina rigorosa dentro do seu grupo: a uma

As mulheres no Cante alentejano 22/27

Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
chamada de atenção “o homem parece que foi transportado outra vez para
casa”. Esse espaço é satisfatoriamente respeitado no Grupo Coral Misto “Alma
Nova” de Ferreira do Alentejo (inicialmente grupo feminino), o que é notório
observando o lugar que homens e mulheres ocupam nos momentos que
antecedem o ensaio na sua sede: as mulheres juntam-se na sala a conversar; os
homens fazem o mesmo do lado de fora da porta. Manuel Cansado, pela sua
experiência, julga ser “mais vantajoso” ensaiar mulheres. “A gente sabe como
é que são os homens. Os homens, há muitos deles que gostam de uns copos,
vinho”. “Nas mulheres isso não acontece (…) Refilam umas com as outras mas
comigo não. Elas comigo não”. Talvez por isso alguns grupos femininos optem
por ensaiadores masculinos exteriores ao grupo. A isto acresce o facto de, dado
que as mulheres estiveram arredadas do Cante formal por várias décadas, não
existirem mulheres com a experiência e maestria dos homens no seio dos
grupos. Efectivamente, é esse um dos desafios que se coloca à mulher hoje em
dia. Se, no início, a maioria dos grupos corais femininos procurou o apoio de
elementos experientes no domínio do cante em grupo (logo, necessariamente,
elementos masculinos exteriores ao grupo), hoje é possível encontrar grupos
nos quais a mulher assume o papel de ensaiadora e em que, à semelhança de
muitos grupos corais masculinos, é escolhido o elemento dentro do grupo com
mais aptidão para a tarefa.
Grupo misto, um novo desafio
Hoje encontramos grupos corais um pouco por toda a parte em que
encontramos alentejanos (e mesmo até em locais em que eles não estão
presentes…), num fenómeno de localismo em que cada terra, cada freguesia,
quer ter o seu grupo. Não é estranho, portanto, que muitos grupos justifiquem a
sua formação pela ausência de um grupo na sua localidade quando noutras da
região estes já existem. As tradições locais assumem particular importância
para os grupos, que pretendem cantar a sua terra, as suas cantigas e modas e
constituir-se unicamente com recurso aos seus conterrâneos.

As mulheres no Cante alentejano 23/27

Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
Após um primeiro período em que o cante formal esteve vedado às mulheres,
surgiram vários grupos femininos, gradualmente aceites pelos demais grupos.
Hoje um novo fenómeno toma o seu lugar: a criação de grupos mistos.
Enquanto alguns são deliberadamente constituídos enquanto tais, outros porém,
são fruto da situação que se observa no Cante Alentejano: se por um lado
existem cada vez mais grupos, por outro, as condições em que estes subsistem
estão cada vez mais deterioradas e à medida que nas suas fileiras os cantadores
envelhecem e seu número decresce – tornando-se uma ameaça à sobrevivência
de alguns grupos – novas estratégias têm que ser adoptadas.
O acréscimo de número de grupos corais e a inclusão de novos repertórios
trouxe um novo fôlego ao Cante alentejano mas não o suficiente para que, na
ausência de outros veículos de transmissão da tradição, este chegasse às
gerações futuras. Cada vez mais os grupos sentem necessidade de fazer um
recrutamento mais activo e procuram igualmente cantadores fora das suas
terras. Surgem novos grupos mistos, fruto destas contingências: grupos outrora
masculinos recrutam mulheres (como o Grupo Coral “Os Trabalhadores” de
Montoito e o Grupo Coral da Casa do Povo de Santo Aleixo da Restauração) e
mulheres recrutam homens (como o Grupo Coral Feminino de Mombeja e o
Grupo Coral Feminino “Alma Nova” de Ferreira do Alentejo), já se tendo
assistido à junção de grupos (em Figueira dos Cavaleiros, os grupos corais
masculino e feminino juntaram-se para dar origem ao novo Grupo Coral
Misto).
A continuidade dos grupos passa muitas vezes por criar estas alianças. “As
pessoas vão saindo. Já não tínhamos homens suficientes (…) então arranjaramse quatro ou cinco mulheres (…) A gente aceitou. Para isto continuar tinha que
ser assim”, explica Alexandre Paulino (Grupo Coral da Sociedade União
Perolivense). Do mesmo modo, as mulheres dispõem-se a aceitar homens nas
suas fileiras.
A fusão de grupos, face à dificuldade de entrosamento entre as vozes acima
exposta, implica na maioria das vezes a perda do estatuto de solista para a
mulher. Quando homens e mulheres cantam em grupos corais mistos, salvo

As mulheres no Cante alentejano 24/27

Sónia Cabeça / José Rodrigues dos Santos / Novembro de 2010
algumas excepções
28
, é o homem que assume o papel de “alto” ou “ponto”,
cantando a mulher no coro.
Homens e mulheres cantam hoje novamente em conjunto, no que entendem
como medida necessária para a salvaguarda do Cante Alentejano: um
património cada vez mais reconhecido como verdadeiramente comum.
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etnicidade em Portugal” " Revista Transcultural de Música 7.
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Círculo de Leitores.
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portuguesa e os seus problemas. F. Lopes-Graça. Lisboa, Cosmos.
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Porto, Typographia Occidental.
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Vasconcelos, J. L. (1888). "“Observações sobre as cantigas populares”." Revista
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Fontes complementares:

28
Como por exemplo o Grupo Coral Misto “Os Rurais” de Figueira de Cavaleiros

As mulheres no Cante alentejano 25/27

Câmara Municipal de Serpa
1982a A tradição Vol. I, Serpa: Câmara Municipal de Serpa (Ed. Fac-simile,
Janeiro
1899 - Dezembro 1901
1982b A tradição Vol. II, Serpa: Câmara Municipal de Serpa (Ed. Fac-simile,
Janeiro
1902 - Junho 1904)
Carvalho, João Soeiro de
1996 “Nação Folclórica: projecção nacional, política cultural e etnicidade em
Portugal” in Revista Transcultural de Música vol 7
Faure, Christian
1989 Le projet culturel de Vichy : folklore et révolution nationale 1940-1944,
Lyon,
C.N.R.S. et Presses Universitaires de Lyon
Félix, Pedro
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Celta (pp: 207-232)
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1998 “’Preservar o património do cante’ - Entrevista com António
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Jornal Diário do Alentejo, 17 de Julho de 1998
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1981 Cancioneiro Popular Português Lisboa: Círculo de Leitores
Guerreiro, José Francisco Colaço
2005 “O Cante das Mulheres” em http://cantoalentejano.com
Lopes Graça, Fernando
1946 “Apontamento sobre a canção alentejana” em A Música Portuguesa e
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As mulheres no Cante alentejano 26/27


1973 “Acerca do canto alentejano” em Obras Literárias, Lisboa: Edições
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Marvão, António Alfaiate
1966 Origens e características do folclore musical alentejano - Estudo feito
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1985 “O Cante Alentejano” em Congresso Sobre o Alentejo - Semeando
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1883 Cancioneiro de Músicas Populares Vol I, Porto: Typographia
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As mulheres no Cante alentejano 27/27

1898 Cancioneiro de Músicas Populares Vol III, Porto: Typographia
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1902 “Costumes da minha terra - Os Decantes” em Revista A Tradição 4º ano
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1964 “Música Popular Polifónica Vocal – O Cante Alentejano Instrumentos”
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Pedrosa, Nélia
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2008 “Palavras proféticas de Michel Giacometti” em Revista Alentejo nº 22,
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Vasconcelos, José Leite de
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1916 “Terras do Sul - Cantos Alentejanos” em Revista Águia vol X - 2ª serie
Outras fontes:
- Entrevistas realizadas no âmbito do projecto;
- “O Cante delas”, reportagem SIC emitida a 11/03/2009;
- www.cantoalentejano.com: Moda – Associação do Cante Alentejano

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

P E T I Ç Ã O - CANTE ALENTEJANO

Já está a correr a PETIÇÃO MANIFESTO CANTE ALENTEJANO A PATRIMÓNIO IMATERIAL DA HUMANIDADE.



PETIÇÃO - CANTE ALENTEJANO

CANTE ALENTEJANO - MANIFESTO



MANIFESTO

CANTE ALENTEJANO A PATRIMÓNIO

1 - O Cante Alentejano é uma forma de expressão vocal, secularmente arreigada na nossa memória colectiva e tradicionalmente interpretada pelos habitantes de uma grande parte do imenso Alentejo, cuja melodia, forma e regras têm vindo a ser cautelosamente respeitadas e transmitidas de geração em geração.

2 - Guarda-se , por isso, activa e incólume, essa forma de cantar que impregna, como sua parte integrante e indissociável ,o imaginário e o ser espiritual do povo alentejano.
Na sua terra ou desterrados algures no mundo, os alentejanos revêem-se sentimentalmente nas suas “modas” e por isso, as cantam com paixão, quer na envolvência descontraída de um convívio, quer no aprumo dos Grupos Corais, onde, desde há muito se organizam, para cultivarem esta essência da sua tradição.

3 – Por insistência da “MODA- Associação do Cante Alentejano”, a quase totalidade dos concelhos do Alentejo e mais alguns da área da Grande Lisboa, classificaram o Cante como seu património oral e iniciaram também acções de apoio ao seu ensino, junto das escolas do ensino básico, buscando-se futuro para esta nossa herança do passado.

4 – Apesar da continuada aculturação de que somos alvo e do sistemático aviltamento das nossas raízes que desde há décadas nos mina a identidade cultural, o Cante Alentejano tem resistido ao seu tendencial apagamento e continua, apesar das múltiplas dificuldades, a impor-se, determinando o continuado aparecimento de novos Grupos Corais, em particular os femininos, que em si mesmos constituem um inegável e determinante factor de coesão social e cultural para as gentes transtaganas.

5 – Neste contexto, porque o Cante Alentejano constitui uma preciosa expressão de sentimento, alma e vida do nosso povo, cuja perda seria irreparável para nós e empobrecedora para toda a humanidade, vimos saudar e manifestar o nosso apoio à Candidatura do Cante Alentejano como Património Imaterial da Humanidade, de cuja aprovação resultará um justo reconhecimento por parte da UNESCO da grande valia etno-musical da “moda”, um novo alento para os actuais e futuros interpretes, assim como a garantia da necessária salvaguarda deste património de valor inestimável.

José Francisco Colaço Guerreiro
Luís Milhano

sábado, 15 de outubro de 2011

VIANA DO ALENTEJO












Viana do Alentejo é uma vila portuguesa, no Distrito de Évora, região Alentejo e subregião do Alentejo Central, com cerca de 2 800 habitantes.
É sede de um município com 393,92 km² de área e 5615 habitantes (2001), subdividido em 3 freguesias. O município é limitado a norte pelo município de Montemor-o-Novo, a nordeste por Évora, a leste por Portel, a sueste por Cuba, a sul por Alvito e a sudoeste e oeste por Alcácer do Sal.
Outrora foi conhecida como Viana a par de Alvito.

Freguesias

As freguesias de Viana do Alentejo são as seguintes:
Aguiar
Alcáçovas
Viana do Alentejo

População

1801 – 1.298
1849 – 3.493
1900 – 5.065
1930 – 7.814
1960 – 9.237
1981 – 6.188
1991 – 5.720
2001 – 5.615
2004 – 5.639

Património
Castelo de Viana do Alentejo
Igreja Matriz de Viana do Alentejo






HISTÓRIA

É sede do concelho e uma vila de extraordinária importância na história de Portugal. Desempenhou sempre um papel de destaque na defesa estratégica do nosso território.
O povoamento é muito remoto. O arqueólogo José Leite de Vasconcelos, que estudou o local nos inícios deste século, descobriu uma série de vestígios arqueológicos, que poderão ser atribuídos à época romana. Restos de cerâmica, algumas moedas e mesmo uma necrópole romana com as respectivas inscrições nas cercanias do local onde se encontra hoje o santuário dedicado a N.ª Sr.ª d’Aires. Aliás, o próprio lugar de Paredes parece querer indicar que ali existiu algum tipo de muros, muito provavelmente castrejos. Alguns autores, são da opinião que este templo cristão sucedeu directamente a uma ermida do paganismo hispano-romano.

Devastada pelas algariadas mouriscas, a vila foi repovoada no século XIII por D. Gil Martins e sua mulher, D. Maria Anes. Em 1269, encontramos um documento sobre a vila, em que D. Martinho, Bispo de Évora, reconhecia ter direito apenas a um quarto dos dízimos da "igreja de Fochem". Por morte de D. Gil Martins e sua mulher, passou Viana do Alentejo para a posse do seu filho, D. Martim Gil de Sousa, Conde de Barcelos.

Foi no reinado de D. Afonso III que lhe foi concedida a primeira carta de foral, mais tarde renovada por D. Dinis (1321) com privilégios iguais aos de Santarém. Foi também D. Dinis que lançou as bases para a construção do seu castelo, iniciada em 1313, e a elevou à categoria de vila. Fazia parte do seu termo Alvito, Vila Nova, Vila Ruiva e Malcabron. Os seus moradores recebiam 1000 libras de ajuda para levantarem as muralhas. A extensão do termo de Viana durante o reinado de D. Dinis era muita significativa, já que ia até Vila Alva, na época Malcabron, que se encontra actualmente no concelho de Cuba.


NOSSA SENHORA D'AIRES






A romaria de Nossa Senhora d'Aires, em Viana do Alentejo, distrito e arquidiocese de Évora, remonta a 1748, quando se iniciou o culto mariano deste local situado nas imediações da vila de Viana do Alentejo. Tudo terá nascido de um voto feito por alguns comerciantes (devido a uma epidemia que então grassava na região). Uma vez atendido o voto, de imediato se iniciou a construção do imponente santuário que hoje é o palco desta romaria.

Feira de Nossa Senhora d'Aires

A romaria principal é mais propriamente uma feira, com origem no alvará de D.José, datado de 27 de Setembro de 1751, que autorizou a realização de uma feira franca nesta local. A feira/romaria ocorre no quarto domingo de Setembro, quando se faz uma pequena procissão com a imagem da Virgem em redor do templo (onde se encontram inúmeros ex-votos).

Romaria a cavalo

A romaria a cavalo tem como objectivo a recuperação de uma tradição abandonada há cerca de 70 anos, quando os lavradores e agricultores se deslocavam com os seus animais ao Santuário de N. Sra. d'Aires para pedir protecção para o gado e boas colheitas. A Romaria a Cavalo realiza-se, no quarto fim-de-semana de Abril, entre a Igreja de Nossa Senhora da Boa Viagem, na Moita do Ribatejo, e o Santuário de Nossa Senhora D’Aires, em Viana do Alentejo. A romaria é realizada pela antiga canada real, conhecida, igualmente, pela estrada dos espanhóis e que perfaz um total de 120 km. Esta romaria tem um carácter religioso associado, sendo a Virgem transportada na romaria.
Na primeira edição, em 2001, a romaria contou com a participação de cerca de 200 romeiros.


Elementos recolhidos na Wikipédia

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

POESIA




(POESIA EM DÉCIMA. Para quem não sabe: estilo de poesia alentejana em que há um mote, e
um desenvolvimento em estâncias de dez versos em que o último vai reproduzindo cada um
dos versos do mote, pela sua ordem)
EM OLIVENÇA HOUVE FADOS
DÉCIMAS

Mote

Em Olivença houve fados/
na Rua dos Saboeiros;/
sentimos-nos recompensados/
entre tantos companheiros//

1
Dia vinte e dois de Julho/
do ano de dois mil e dez,/
entre cervejas e cafés/
lá findou todo o barulho./
E foi então, com orgulho/
que se escutaram os brados/
de músicas e dedilhados,/
porque nessa noite notável/
naquela artéria venerável/
EM OLIVENÇA HOUVE FADOS!//

2
Foram logo quatro fadistas/
que, com todos os seus dotes,/
desenvolveram os seus motes/
mostrando ser bons artistas./
Com expressões intimistas/
lá cantaram, altaneiros,/
de rostos sempre faceiros/
para quem os estava ouvindo/
em momentoas de gozo infindo/
NA RUA DOS SABOEIROS.//

3
Muito brilhou o Jorge Goes/
e também o João Ficalho;/
a Marlene foi o borralho/
com o calor dos seus bemóis/
que soaram como crisóis./
A Soraia fez agrados/
com seus belos trinados./
Depois de a todos ouvir/
com os corações a sorrir/
SENTIMOS-NOS RECOMPENSADOS.//

4
O Fado em casa se ouvia/
naquela noite tão morna;/
e da Pecorinha (*) à Corna (*)/
muita gente compreendia/
que uma nova era se abria./
Amanhãs mais verdadeiros,/
de mais indivíduos inteiros,/
no seu futuro mais crentes,/
oliventinos contentes/
ENTRE TANTOS COMPANHEIROS!

(*) Bairro de Olivença

Estremoz, 24 de Julho de 2010
Carlos Eduardo da Cruz Luna

OUGUELA



HISTÓRIA DE UMA ANTIGA VILA DO DISTRITO DE PORTALEGRE

HISTÓRIA DE OUGUELA

OUGUELA

-História e declínio de um Concelho-

Quem hoje se afasta de Campo Maior para norte, ou nordeste, encontra, a cerca de 10 quilómetros, uma povoação, Ouguela, de pouco mais de 60 habitantes. Um castelo de grandes dimensões, e que desde logo nos surpreende, domina a paisagem.
Trata-se de mais um caso de uma povoação que já teve alguma grandeza, e que conheceu um grande declínio, um pouco como sucedeu com Juromenha, e, em menor escala, com Terena, para já não falar de outras.
Algumas fontes antigas dizem que ali, existiu uma povoação romana chamada “Budua”, e que nos tempos visigodos, e até talvez árabes, se chamava Niguella. Não se sabe se há fundamentos para tais afirmações ou se estamos perante lendas.
Por volta de 1220 ou 1230, a região de Ouguela, bem como Campo maior, foi conquistada por leoneses. As duas localidades tornaram-se aldeias de Castela-Leão, com algumas situações de conflito sem grande importância, até que, em 1297, pelo tratado de Alcañices, passaram para Portugal, tal como, na região, Olivença (e Táliga). Ouguela (assim se passou a chamar) recebeu foral do mesmo tipo do de Évora, logo em 1298. Todavia, com Campo Maior e Olivença, dependeu do bispado de Badajoz até 1415. O castelo foi mandado reconstruir em 1300 (o que indica que já existia algo de fortificações no local, a não ser que se trate dum erro). Outras fontes indicam 1310, o que parece ser menos provável.
A importância de Ouguela, estava na sua posição estratégica, já que defendia um dos caminhos de entrada em Portugal, primeiramente conta Leão e Castela, depois contra a sua sucedânea Espanha.
Ouguela quase não é citada na crise de 1383-85, presumindo-se que terá sido anulada por Campo Maior, que se colocou do lado de Castela. Portanto, só terá regressado à coroa portuguesa entre 1348 e 1390. É muito possível que se tenham desenrolado combates na região, e que a população tenha sofrido com isso.
O seu castelo é várias vezes reforçado nos séculos XIV e XV, o que significa que mantinha a sua importância estratégica.
Em 1475, segundo a lenda e alguns documentos, ter-se-á travado um estranho combate singular entre João da Silva, alcaide-mor de Ouguela, e João Fernandes Galindo (Juan Fernández Galindo), alcaide-mor de Albuquerque (Espanha). Parece que um contigente castelhanho penetrara na vila. Ambos morreram dos ferimentos sofridos, tendo em 1551 Diogo da Silva, neto do alcaide-mor então falecido, a caminho do Concílio de Trento, mandado colocar no local de combate uma cruz comemorativa, hoje no museu de Elvas (Cruz de Galindo). Não se sabe o que haverá de fantasioso em tal episódio.
Em 1de Junho de 1512, Ouguela recebeu uma nova carta de foral (reinado de D. Manuel).
Claro que Ouguela, ou melhor, as suas gentes, terão participado na gesta dos descobrimentos iniciada no século XV, e terão vivido a decadência portuguesa da segunda metade do século XVI e do século XVII.
Em 1527, o numeramento (censo) de Portugal dava a Ouguela 144 fogos (cerca de 600 a 650 habitantes), ao lado de Campo Maior (cerca de 2900 habitantes), Alegrete (cerce de 1000 habitantes), Arronches (cerca de 3300 habitantes), Elvas (8900 habitantes), Olivença (4900 habitantes), Juromenha (600 habitantes), Terena (600 habitantes também), Vila Viçosa (3000 habitantes), Borba (3800 habitantes), Estremoz (4500 habitantes), Marvão (1700 habitantes), Monforte ( 2500 habitantes).
A guerra da restauração (1640-1668) levou novas agruras para a sua população. Datam dessa Época alguns troços de muralha com os primeiros trabalhos em 1647, mas que se estenderam pelo século XVIII.
Logo em 1642, Ouguela fora atacada, mas o exército espanhol não levara a melhor, conseguindo a vila resistir vitoriosamente. Um episódio semelhante ocorreu em 1644, mas aí os combates foram bem mais ferozes. A população resistiu com bravura, tendo várias lendas nascido na época.
Na memória popular ficou uma mulher, Isabel Pereira, que, segundo rezam documentos da época, se mostrou dotada de grande valentia, “quer pelejando nas trincheiras, [quer] repartindo pólvora e balas aos soldados; e retirada ao castelo ficou desacordada por algum espaço com a ferida que lhe deram, até que, tornando a si, e vendo que não era perigosa, prosseguiu a pelejar com maiores brios até ó fim”.
Em 1662, todavia, Ouguela rendeu-se sem resistência ao exército espanhol de D. João de Áustria. O capitão Domingos de Ataíde Mascarenhas, que deu a ordem de capitulação, foi depois severamente punido.
A paz de 1668 permitiu às terras raianas recomeçar a sarar as feridas, tanto do lado português como espanhol. Mas… novos conflitos se sucederam. Assim, em 1709 houve novas destruições em torno da vila, e em 1762 um rigoroso cerco, durante o qual o capitão Brás de Carvalho conseguiu resistir heroicamente.
Na obra “Corografia Portuguesa”, de 1708, de António Carvalho da Costa, tomo IF, duas páginas são dedicadas à vila de Ouguela; diz-se que a povoação tem mais de 700 habitantes, que o seu orago é Nossa Senhora da Graça, que tem casa da misericórdia na ermida do Espírito Santo. Mais, fala-se em ruínas antigas junto a uma ermida, são Salvador, a quatro quilómetros da vila, citada como tendo sido “Casa dos Templários”.
Diz-se ainda que Ouguela “é (…) abundante de pão, vinho, e gados, e [que] tem uma fonte com duas propriedades notáveis: uma, que toda a cousa viva, que se lhe lança dentro, morre logo, excepto rãs; e outra, que de maneira nenhuma coze carnes, nem legumes”. Mais, diz-se que a vila “tem dois juízes ordinários, vereadores, um procurador do concelho, um escrivão da câmara, um juiz órfãos com o seu escrivão, outro do judicial, e notas, e uma companhia de ordenança”. D. Pedro da Cunha, senhor de Tábua, é apontado como senhor de Ouguela.
A obra refere a lenda da igreja de Nossa senhora da Enxara, no caminho de Albuquerque, semelhante a tantas outras, nas quais uma divindade, ou uma estátua da mesma, indica o lugar onde se lhe deverá erguer um templo. Neste caso, é uma garota, e depois a sua mãe, que são escolhidas pela divindade. Descreve-se a imagem da Santa e opina-se que poderá ter origem visigótica. Refere-se que há muita devoção à mesma, e que pessoas de Campo Maior, e até de Castela, lhe pedem protecção, e visitam a Igreja.
É significativo, talvez, que não se refira a “lenda do tamborzinho”. Com as devidas reservas, tal poderá significar que esta, tão difundida em Ouguela, terá tido origem num facto ocorrido em 1709 ou em 1762. Dificilmente poderá ter tido lugar mais tarde.
A lenda diz que estando Ouguela cercada durante uma guerra (não se indica qual), e não sendo possível pedir socorro a Campo Maior, uma criança terá descido pela figueira que ainda hoje se vê junto á muralha, transportando uma bandeira e uma mensagem escrita, e talvez um tamborzinho com que costumava brincar. Não tendo levantado suspeitas no campo espanhol, ultrapassou as linhas inimigas e chegou a Campo Maior, entregando a mensagem no hospital. Diz-se que Ouguela terá tido um brazão inspirado nesta lenda, mas nada consta em documentos. Afinal, esta lenda reflecte a vivência de posto militar raiano das gentes de Ouguela.
Tudo isto terá influído no sentido de, em 1800, haver em Ouguela só 24 vizinhos “dentro” da vila e 20 fora (cerca de 200 habitantes, talvez). Em 1801, durante a Guerra das Laranjas, após a conquista de Olivença e Juromenha, Campo Maior rendeu-se ao exército espanhol, mas só depois de violento cerco e de muita resistência (15 de Junho). Ouguela não foi atacada, mas caída Campo Maior era um espinho nas costas do inimigo. 460 espanhóis, simulando um maior número pela disposição no terreno, aproximaram-se do castelo. O governador, Jóse Joaquim Queirós, acabou por entregar Ouguela ao atacante, já que não havia qualquer possibilidade de resistência (esta descrição encontra-se no Livro “A Guerra das Laranjas/A perda de Olivença”, de António Ventura, 2004, Ed. Prefácio).
Até 1811, decerto houve alguns conflitos em terras em redor de Ouguela, mas de pouca monta, pois quase nada chegou até nós. Os vários conflitos do início do século XIX pouco rasto deixaram na região.
A novidade seguinte, pouco alegre para a vila, é que em 1836 se extinguiu o concelho, sendo unido a Campo Maior. A decadência, que já vinha do século XVIII, reflectia-se a nível administrativo. E algo pior sucedeu, quando Ouguela deixou de ser freguesia e foi anexada a São João Baptista (Campo Maior) (1941).
É um pouco triste seguir esta história. Uma povoação nasceu e cresceu, teve momentos de alguma grandeza e de glória… e iniciou um processo de decadência.
Algumas quadras populares falam de Ouguela. Uma refere-se à sua grandeza:
Bela cidade de Ouguela
Dá vistas à lapagueira
Mal empregada cidade
Estar em tão alta ladeira
A lapagueira será um acidente geográfico.
Outra ironiza com a sua decadência, e, com algum sentido de humor, reza assim:
Adeus vila de Ouguela
Que não há vila mais nobre
Para teres vinte ruas
Faltam-te só dezanove
Assim é a roda da história. Olhando as velhas muralhas, a que não falta ainda opulência, sentimos-nos comovidos. Uma inscrição em latim, num dos arcos, informa-nos de uma divisa dos seus antigos defensores e moradores. “pro patria, pro rege et pro fide, aut vincere, aut mori” (pela pátria, pelo rei, e pela fé, vencer ou morrer).
O tempo é (mesmo) implacável.
Há, todavia, que pensar no futuro. Ouguela, hoje com apenas cerca de 60 habitantes, terá de procurar reerguer-se. O seu castelo, que já foi palco de filmagens de séries de televisão, tem uma beleza indesmentível. Há que ser-se imaginativo e ter força de vontade, e aproveitar tão vetusto monumento. Agora já não, porque felizmente tal não é necessário, como lugar de defesa, mas quiçá, como lugar de encontro, entre as raias alentejana e extremenha.
Que esta singela história da antiga vila, hoje “lugar”, de Ouguela, abra caminho nesse sentido, seja um primeiro passo, eis o meu sincero desejo.

Estremoz, 2 de Novembro de 2005
Carlos Eduardo da Cruz Luna

ELVAS



BREVE HISTÓRIA DE ELVAS

1) AS ORIGENS
Ergue-se a cidade de Elvas, uma das mais importantes de Portugal, a cerca de 70 Km. a Nordeste de Évora, 40 Km. a Leste de Estremoz, 9 Km. a Noroeste do Guadiana, e 12 Km. a Oeste de Badajoz.
Trata-se duma daquelas cidades cuja origem remota é bastante obscura. Isto, porque sendo abundantes os vestígios dae presença humana desde a Pré-História até à Época visigótica, os mesmos estão normalmente dispersos pela área do Concelho (antas ou dólmens, estátuas romanas de grande qualidade, e outros artefactos), não sendo possível saber se no local onde hoje se ergue a Urbe existiu ou não uma povoação antiga de razoáveis dimensões. Considerando o factor geográfico, é bem provável que sim. Contudo, as teorias, inúmeras, avançadas a esse respeito, nada produziram de realmente concreto... não passando mesmo algumas de invenções e piedosas fantasias.
Ao certo, sabemos que os Muçulmanos ali ergueram uma cidade, com uma fortaleza, a que chamaram Yalbas ou Yelch. Dependeu da Taifa de Batalyaws (Badajoz), independente durante algum tempo. Em 1166, D. Afonso Henriques conquistou-a, para logo ser perdida. E só no ano de 1226 os Cristãos se aproximaram de novo. Em 7 de Setembro de 1228, rendia-se a D. Sancho II. Logo Elvas (nome claramente derivado dos topónimos árabes) recebeu uma Carta de Foral (Maio de 1229). As muralhas foram em seguida e rapidamente reconstruídas, aproveitando a traça moura. É perfeitamente visível a herança arábica nas ruas mais antigas, e, na fortificação medieval, a mesma herança é por vezes impossível de separar da cristã.
2) INTEGRAÇÃO DEFINITIVA EM PORTUGAL E IDADE MÉDIA
Em 1228 ou 1230, Batalyaws (Badajoz) caía em posse do Reino de Leão. As duas cidades tomavam, quase ao mesmo tempo, o lugar por que mais ficaram conhecidas na História. Duas urbes fortificadas, vigiando-se e hostilizando-se, em tempo de guerra, e comerciando e fazendo o papel de porta de entrada de Portugal, de um lado, e de Leão, depois Castela, por fim Espanha, do outro, em tempo de paz.
A importância que Elvas teve desde o início está patente no facto de em 1262 nela se efectuar uma primeira Feira. D. Afonso III também beneficiou a cidade, em 1271, enquanto D. Dinis, em 1280, mandou fazer obras no seu Castelo.
Evidentemente, vários conflitos internos e algumas guerras com Castela se fizeram sentir ali.
Em 1383, era assinado em Elvas um Tratado pelo qual o rei D. Fernando casava a sua filha D. Beatriz com D. João de Castela. Como se sabe, tal casamento foi uma das causas da crise de 1383-1385. As cidades e vilas do Centro e Sul de Portugal, quase todas, e algumas do Norte, abraçaram a Revolução. Também o fez Elvas, vendo-se todavia rodeada, por algum tempo, por praças favoráveis a Beatriz e João de Castela (Campo Maior, Olivença, e Vila Viçosa), o que provocou muitos confrontos na Região. Gil Frenandes, ou Gil "Navalha", o alcaide, desembaraçou-se com habilidade e valentia, sendo por isso considerado um dos primeiros heróis de fama nacional dali oriundos. Abundam episódios sobre a sua vida, alguns dos quais seguramente míticos..
O Castelo tinha, ao tempo, 22 torres e 11 portas. Até pouco depois de 1390, portugueses e castelhanos defrontaram-se à sua beira e nos territórios próximos, fazendo incursões e destruindo com afã, dum e doutro lado, tudo o que podiam... provando, como se tal ainda fosse necessário, ser a guerra uma das actividades mais destrutivas, estéreis, e desumanas, já inventadas pelo Homem.
A Paz, definitiva, chegou em 1411, e, com ela, reatou-se um profícuo laço comercial entre Elvas e Badajoz.
3) ERA DOURADA
D. João II, que mandou proceder a obras nas praças fronteiriças, fez levantar no Castelo a Torre de Menagem, por volta de 1488, além de ordenar que se iniciasse a construção de uma barbacã, só terminada já no reinado de D. Manuel I. Aliás, o reinado de D. Manuel, e os seguintes, foram dos mais importantes para a História da Região. A Paz reinante ajudava a que se verificassem vários progressos, com poucos sobressaltos. Elvas e Olivença terão sido as povoações da Raia que mais beneficiaram com isso. Portugal, recorde-se estava no seu apogeu. Os Descobrimentos pareciam trazer riquezas sem fim. Em Elvas, foi construída a Igreja Matriz (Sé), alterada uns séculos depois, e foi remodelada a Igreja de São Domingos, que datava do Século XIV. Foi construída a Ponte da Ajuda entre Elvas e Olivença (talvez 1510-1520). E continuaram as obras do imponente Aqueduto da Amoreira, aliás já iniciadas no século XV, e que se prolongariam até ao Século XVII. No numeramento de 1527, Elvas surge como a quinta maior cidade portuguesa, atrás de Lisboa, Évora, Porto, e Santarém. Próximo, só Olivença, e, um pouco mais longe, Estremoz e Portalegre, podiam aspirar, remotamente, a com ela rivalizar. Olhando os números, sem dúvida que Elvas, com os seus cerca de 8 000 habitantes, se destacava no meio de Olivença ( 4 000 habitantes ), Estremoz ( 3 200 ), Vila Viçosa ( 3 000 ), Campo Maior ( 2 500 ), e Portalegre ( 6 000 ). A capital da província, Évora, andaria por volta dos 15 000 moradores.
Esta situação justifica o facto de pouco antes, em 21 de Abril de 1513, ter sido atribuída a Elvas a categoria de Cidade. E em 1570, surgiu nova promoção, ao ser transformada em sede de Bispado, com os territórios vizinhos do extinto Bispado de Ceuta ( Olivença, Campo Maior, Ouguela) e outros, retirados a Évora. Só em 1881 desapareceria esta dignidade, como se verá.
A época dos Descobrimentos viu inúmeros elvenses partirem para todos os cantos do mundo, tendo alguns ficado famosos. Entretanto, o Século XVI veria o País passar da prosperidade a uma crescente situação de crise.
4) CRISE E GUERRA
Em 1580, ao contrário do que sucedera em 1383, Elvas abriu as portas a Filipe II de Espanha, que nela ficou durante algum tempo antes de seguir para Lisboa. A propósito, assinale-se que, pela sua importância, a cidade foi recebendo visitas, algumas prolongadas, de vários soberanos, quase desde a sua integração em Portugal. Diga-se desde já que assim continuou a acontecer a partir de então.
A União das coroas de Portugal e Espanha num mesmo soberano beneficiou inicialmente Elvas, mas não tanto como se pensava ou desejava. E, à medida que os tempos corriam, surgiram situações de descontentamento, comuns a todo o País. Não foi por acaso que, em 1637, surgiu uma revolta de alguma importância. Curiosamente, durante essa revolta popular que passou à História com o nome de "Revolta do Manuelinho", pouca ou nenhuma agitação se viu em Elvas, o que parece ser estranho, dado que se produziram levantamentos em terras próximas (Olivença, Alandroal, Vila Viçosa, Borba, Cabeço de Vide, e outras). Parece que as classes dominantes em Elvas conseguiram prevenir problemas, e talvez os laços com Badajoz, de que a cidade muito dependia, o tenham evitado.
A verdade é que, no início de 1640, Elvas não parece ter reagido muito contra os impostos lançados por Olivares. Todavia, em Dezembro do mesmo ano, a notícia da separação de Portugal não provocou hostilidade, antes uma aceitação pacífica. E, logo no início de 1641 Elvas se armou com homens e material de guerra, e em 1642 iniciaram-se trabalhos acelerados de construção de uma nova cintura de fortificações, capaz de resistir à artilharia ( o chamado "estilo Vauban" ). Nasciam assim as modernas muralhas de Elvas, às quais mais tarde seriam acrescentados os fortes circundantes. Como a cidade dispunha já de uma poderosa muralha, em parte edificada nos tempos de D. Manuel I, foi possível, em alguns casos, uma reconversão. Todavia, a concepção era completamente nova, e muitas vezes os muros existentes serviram apenas de "pedreira" ao pé da porta para novas paredes. Também Estremoz e Olivença foram beneficiadas com muralhas semelhantes, bem como a mais pequena Juromenha. Campo Maior e Vila Viçosa efectuaram obras de vulto nos seus castelos medievais. Situações semelhantes ocorreram ao longo de toda a Raia, do Minho ao Algarve.
Em 1644, a Guerra chegou mesmo, sendo Elvas cercada inutilmente por algum tempo pelo exército espanhol. O quadro já descrito para 1383-1390 repetiu-se. Mais uma vez, exércitos dos dois lados em confronto se odiaram na fúria da Guerra, causando a morte e a destruição dos dois lados da fronteira. Eis o resultado e o triste preço a pagar pelas desastrosas políticas de governantes e classes dirigentes, ansiosos por aumentar os seus domínios e as suas riquezas sem olhar a meios, e esquecendo-se de procurar beneficiar as classes mais desfavorecidas. E, como em todas as guerras, era o povo simples, e quase sempre só ele, independentemente de raça ou língua, a pagar o preço das consequências desastrosas de tantas ambições e fracassos.
Graves confrontos, entretanto, se produziram em 1657. Olivença caíu, e muitos dos seus habitantes se refugiaram em Elvas, enquanto outros se distersavam por Juromenha, Alandroal, Vila Viçosa, e Estremoz. Elvas resistiu, mas ficou mais ameaçada no flanco sudeste.
5) O ANTIGO REGIME
O fim, todavia, estava próximo. A 14 de Janeiro de 1659 a batalha, dita "das Linhas de Elvas", destroçava uma poderosíssima invasão espanhola, e punha praticamente fim a qualquer esperança de Madrid de vir a conseguir recuperar Portugal. Ao lado das batalhas do Ameixial e de Montes Claros, este evento assinalou claramente o apogeu da guerra, mas também o seu final. É quase inútil dizer que correu sangue, muito sangue, naqueles campos de batalha. Não é sempre assim ? Por que será que não serve de lição ? A Paz de 1668 foi evidentemente bem vinda. As fronteiras na Península foram repostas como eram, regressando as populações aos seus lares, muitas vezes destroçados. Poder-se-ia agora voltar a comerciar e a contactar normalmente com o vizinho, procurando benefícios mútuos.
Infelizmente, o Alentejo e a Extremadura espanhola pouco tempo tiveram para sarar as suas feridas. Entre 1703 e 1713, a Guerra regressou. E Elvas, bem como Badajoz, foram de novo palco de confrontos. Em 1709, por exemplo, o exército espanhol do Marquês de Bay fazia ir pelos ares os arcos centrais da Ponte da Ajuda, talvez um pouco como vingança de em 1706 não ter conseguido entrar em Elvas.
Ficaram assim dificultadas as ligações entre as duas margens do Guadiana e entre as urbes irmãs até então. A paz veio, mas a reconstrução da Ponte foi sempre sendo adiada ao longo de todo o século XVIII.
Ninguém podia duvidar que Elvas era uma cidade militar. Por volta de 1750, quando surgiu nova ameaça de conflito, viviam nela 10 000 "civis" e 7 400 militares !
E, contudo, algo de negativo estava a surgir. Aparentemente, nada mudava, mas, na verdade, a importância relativa de Elvas no País ia decrescendo. Elvas crescia com o natural aumento demográfico geral, mas não mais do que isso. O litoral português começava a "adiantar-se em relação ao interior, ainda que isso na época passasse despercebido.Entretanto, Elvas era uma das capitais das cinco subdivisões administrativas maiores em que o Alentejo se subdividia desde o século XV. De Elvas dependiam os Concelhos de Ouguela, Campo Maior, Vila Boim, Barbacena, Vila Fernando, Juromenha, Olivença, Alandroal, Terena, Capelins, e Monsaraz. Quase toda a Raia, afinal. Note-se que este era um dos tipos de subdivisões existentes. Outras existiam, paralelas, com competências por vezes contraditórias, o que provocava muitas confusões. O Alandroal, por exemplo, "obedecia" a Elvas em determinados assuntos, mas dependia de Vila Viçosa para outros, e até de Avis para alguns outros.
6) A DIFÍCIL ENTRADA NO SÉCULO XIX
A Revolução Francesa ( 1789 ) teve reflexos mais ou menos profundos em Portugal e Espanha, principalmente pelo pavor que se apoderou das classes dirigentes e das Casas Reais. Para Portugal, a situação piorou principalmente quando a Espanha, esquecido pragmaticamente o pavor, entrou na órbita francesa (1795-1796). Em 1801, o exército espanhol sob o comando de Godoy, após a capitulação de Olivença, cerca Elvas. A cidade não se rendeu, mas Godoy arrancou junto às muralhas dois ramos de laranjas que enviou à Rainha de Espanha, gesto que deu o nome, irónico e jocoso, ao curto conflito: Guerra das Laranjas. Houve ainda tempo para, após duras lutas e uma resistência encarniçada, tomar Campo Maior.
A Paz, consagrada no Tratado de Badajoz, assinalou também, desde a sua assinatura, o surgimento de um litígio cuja resolução final ainda se aguarda, concretamente a questão da posse de Olivença. De qualquer forma, logo em 1807 recomeçava a Guerra. Invasores franceses, aliados aos espanhóis, ocuparam Portugal. Em Elvas estiveram até 1 de Outubro de 1808, seguindo para Lisboa para regressarem à Gália. A segunda invasão francesa em nada afectou Elvas, mas a terceira viu portugueses, ingleses, e espanhóis ( agora aliados ), lutarem, juntos para expulsar os invasores, nomeadamente nas regiões de Elvas e Badajoz, perseguindo-os até território francês (1813). Os acordos de Paris de 1814 e Viena de Àustria de 1815 pacificaram a Europa. Segundo Portugal, tais acordos implicariam a retrocessão de Olivença. Esta situação dúbia impediu, no mínimo, até aos nossos dias, que a velha Ponte da Ajuda fosse reconstruída, pois rodeiam-na delicadas questões diplomáticas. Apenas se conseguiu, depois de inúmeros contratempos, e só em 2000 (11 de Novembro) construir uma nova a cem metros das ruínas da antiga, o que significou o abrir de novos horizontes, mas não levou à resolução do litígio nascido na época napoleónica.
Em 1820, Portugal conheceu o primeiro esboço de Democracia. Mas, poucos anos decorridos, voltou a vigorar o tradicional regime absolutista. Foi necessária uma dolorosa guerra civil (1832-1834) para se entrar na modernidade. Como os últimos episódios dessa guerra decorreram no Alentejo, Elvas foi por isso algo afectada.
7) NOVOS TEMPOS
Muitas mudanças se produziram então. Eram novos tempos. Por exemplo, muitos edifícios religiosos, principalmente conventos, passaram para as mãos do Estado, que neles instalou serviços seus ( Câmara Municipal, Hospital, Tribunais, etc.). Por outro lado, Elvas viu o seu concelho ser engrandecido com a anexação de vários antigos concelhos vizinhos extintos: Vila Boim, Barbacene, Vila Fernando, e Terrugem. Ainda afectou Elvas a nova divisão administradtiva de 1835, que dividiu o Alentejo em três distritos. O mais setentrional abrangeu Elvas, mas a sua sede acabou por ser colocada em Portalegre, perdendo a primeira importância administrativa. Ainda hoje os elvenses tendem a afastar-se da área de influência de Portalegre, quase parecendo esquecer-se que dela dependem...
A Regeneração, em 1851, veio por fim a alguns conflitos que, por mais de uma vez, afectaram os primeiros tempos do Regime Liberal, e que tiveram algum eco, por vezes, em Elvas.
É na segunda metade do século XIX que se constrói a ponte luso-espanhola sobre o Caia. Mais tarde, surgiria o comboio,e a ligação a Badajoz. Todavia, em 1881, era extinto o Bispado, e Elvas passou a depender eclesiasticamente de Évora. Afinal, confirmava-se o que começara a ser vagamente perceptível no século XVIII: o peso relativo de Elvas ia diminuindo.
Claro que Elvas se viu afectada pelas convulsões da Primeira República (1910-1926), mas este regime, demasiado concentrado em Lisboa, não convidou a uma participação muito activa das povoações do Interior. Pior seria a Centralização do Regime que se seguiu (Ditadura e Salazarismo, ou Estado Novo), que só findaria com o regresso à Democracia em 25 de Abril de 1974.
Não se pode deixar de assinalar que a desigualdade da distribuição da riqueza e as injustiças sociais a ela associadas caracterizaram a sociedade elvense, bem como a alentejana em geral, nos séculos XIX e XX. Não que não existissem antes, claro, mas porque uma maior liberdade de expressão, uma crescente consciencialização de tal realidade, e as necessidades económicas, tornaram mais evidente esta situação. Tudo isto, associado a um relativamente fraco desenvolvimento das forças produtivas e a uma insuficiente inovação tecnológica, foi-se revelando prejudicial a um verdadeiro desenvolvimento, muito menos de forma harmoniosa para a sociedade em geral.
8) O SÉCULO XX
Claro que a cidade não ficou parada. Foi alastrando mesmo para fora das muralhas, e no século XX um plano de urbanização, concluído em 1986, procurou que tal ocorresse de forma ordenada.
A Guerra Civil de Espanha (1936-1939) deixou igualmente as suas marcas em Elvas, por vezes de uma forma, digamos, "personalizada". Parte das elites, apavorada com uma eventual ameaça comunista, pactuou, com o apoio do Governo Central, com as forças repressivas franquistas, ajudando a enviar refugiados para Badajoz, onde foram quase todos fusilados. Outros extractos da população, bem como parte das elites, procurou auxiliar e esconder muitos pacenses que procuravam salvar a vida saindo de Badajoz ou arredores e entrando em Portugal. Porque este tema é delicado, falta fazer a sua História.
As décadas de 1950 e 1960, apesar das barreiras alfandegárias e de dificuldades pontuais, viram intensificarem-se as relações entre Elvas e Badajoz. Inclusivamente com o recurso, também tradicional, ao contrabando. Inicialmente, era o lado português que dispunha de vantagens económicas e de maior poder de compra, mas a partir das décadas de 1970 e 1980 a situação foi-se invertendo.
Aliás, ao longo dos séculos XIX e XX (neste, principalmente), Badajoz, durante séculos comparável a Elvas, e pontualmente com menos população, cresceu de forma assinalável, sendo hoje quatro ou cinco vezes maior do que a sua vizinha, o que criou alguns complexos de inferioridade.
A população de Elvas também foi crescendo, mas lentamente, até à década de 1960, quando começou a verificar-se a situação inversa. Apesar da actividade comercial, muito ligada a Badajoz e à Espanha em geral, ocupar muita gente, revelou-se, na verdade, e continua a revelar-se, insuficiente para, por si só, contrariar essa tendência. No início do Segundo Milénio, o Concelho de Elvas tinha cerca de 23 800 habitantyes, cerca de 18 000 só na cidade.
Recorde-se aqui um episódio de valor simbólico: em 11 de Novembro de 2000, foi inaugurada uma nova ponte enttre Elvas e Olivença, o que, como já se disse, deverá ter aberto novos horizontes. Trata-se de procurar caminhos para o futuro, não abdicando de princípios.
9) REFLEXÕES FINAIS
Alguns dos problemas actuais de Elvas são os de Portugal no seu conjunto. O interior do País tende a desertificar-se, perdendo peso. Com isso, torna-se menos atractivo. Não há investimento produtivo porque, entre outras coisas, não há mercado consumidor. Não havendo produção, não há nada para consumir. É um ciclo fechado. Como se tal não bastasse, o Poder Central vai incentivando, ou nada faz para o evitar, o encerramento de serviços. Ainda recentemente circularam notícias nesse sentido ( Quartel, Maternidade ), o que acentua a idéia de declínio e aumente a sensação de inferioridade.
Os responsáveis elvenses, melhor ou pior, têm feito o possível e o impossível para sair deste círculo vicioso. Mas... muita coisa há que mudar em Portugal no seu todo para que se atenuem e combatam as muitas assimetrias que subsistem.
Apesar de tudo, dispõe-se de um bem precioso. A Paz. E Elvas sempre prosperou, às vezes nem tanto como seria desejável, num tal clima. Relacionando-se, por exemplo, amigavelmente com os seus vizinhos do Leste. Há que aproveitar projectos que, num clima de respeito mútuo e de igualdade, beneficiem todos os envolvidos.
Elvas herdou uma arquitectura invejável e quase única. As suas muralhas "estilo Vauban", intactas, fazem dela, e mesmo que fosse só por isso, um monumento sem par. São inúmeras as construções grandiosas, religiosas ou não, que por detrás delas se abrigam, algumas mesmo fora delas. As velhas ruas populares, com o seu traçado mourisco, constituem outro tesouro histórico.
Tudo isto, herança do passado, tem imenso valor no presente, e é um factor inigualável de valorização da cidade. Claro que o futuro passará por inúmeros factores, necessariamente inovadores, mas este dado adquirido, bem aproveitado, é desdfe já uma vantagem.
Este texto, porque limitado no espaço, não pormenorizou inúmeros outros aspectops importantes da História de Elvas. Claro que existem muitos mais monumentos do que os poucos referidos, e não se referiram inúmeras personalidades de relevo nascidas na cidade ao longo dos séculos. Pretendeu-se, apenas, dar uma idéia geral e breve da História do Burgo elvense, que desperte em quem o leia a curiosidade de saber mais e, claro, o desejo de o visitar.
Estremoz, 22 de Fevereiro de 2006
Carlos Eduardo da Cruz Luna